Berenice Giehl Zanetti von Dentz. “A produção artesanal de comida tradicional como patrimônio imaterial: perspectivas e possibilidades”.
RIVAR Vol. 4, N° 11. Mayo 2017: 92-116.


 

Artículos

A produção artesanal de comida tradicional como patrimônio imaterial: perspectivas e possibilidades

La producción artesanal de comida tradicional como patrimonio inmaterial: perspectivas y posibilidades

Artisan Production of Traditional Food as an Intangible Patrimony: Prospects and Possibilities*

 

Berenice Giehl Zanetti von Dentz**

**Profesora de Gastronomía, Panadería y Confitaría en el Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Santa Catarina (IFSC); Magíster en Turismo y Hotelería en la Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALE); Doctoranda en el Programa de Post Graduación en Geografía en la Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Correo electrónico: berenicez@ifsc.edu.br

 


Resumen

El trabajo analiza el conocimiento de ofícios laborales relacionados con la producción de alimentos tradicionales en la región del Grande Florianópolis, teniendo en cuenta las influencias de los diferentes grupos que conforman la región. Al comienzo de la instalación de colonias de inmigrantes la producción de alimentos incluía un conocimiento artesanal entre las familias que en la actualidad se presenta como un patrimonio regional, identificado por alimentos tales como panes, pasteles, quesos, harina de mandioca, entre otros. Estos productos se venden en el mercado informal, en el lugar donde se producen o en los municipios vecinos; al respecto, se observa que los requisitos impuestos por la legislación reducen la producción y circulación de dichos productos. El objetivo es el reconocimiento de los principales productos alimenticios artesanales en la región del Grande Florianópolis y la identificación de posibles certificaciones ayuden en la evaluación e integración de estos en el mercado. Para ello, serán presentadas bibliografías, entrevistas, documentos y observaciones de la vida cotidiana de los agricultores y de las familias residentes en esta región.

Palabras clave: productos tradicionales, procesamiento artesanal, certificación, legislación, Grande Florianópolis.


Abstract

This document analyses the artisanal knowledge related to the production of food in the Great Region of Florianópolis, considering influences of the different ethnic groups. The artisanal knowhow used by the colonists in food production since the beggining of the region, today is called the regional heritage and it’s found in foods such as jellies, breads, cakes, cheeses, cassava, salamis, among others. These products are traded in the informal market, at the production site or in neighbouring towns. There is a rigor of the requirements that can decrease the production and the circulation of the products. Recognition of the tradicional food production in the Great Region of Florianópolis region and the possibility of identification of the certifying which may help to develop and promote these products in the local market is the whole point of the document. The study foresees a comprehensive desk work, interviews and observations the everiday life from farming families of the region.

Keywords: traditional products, artisanal processing, certification, legislation, Great Region of Florianópolis.


 

Introdução

A ascensão do capitalismo industrial, os aperfeiçoamentos conquistados nos níveis de produção, conservação, acondicionamento, transporte e consumo de alimentos comandaram um movimento de aprofundamento da mercantilização e internacionalização de produtos alimentares.

Na alimentação contemporânea, a ampliação dos fluxos de intercâmbio e a abertura das famílias às novas possibilidades de consumo têm provocado uma perda de referência dos produtos, valores e formas tradicionais de produção e elaboração. Consome-se cada vez maior quantidade de alimentos processados industrialmente, e o essencial da alimentação -da maioria dos países desenvolvidos e em fase de desenvolvimento - provém de um sistema de produção e distribuição de escala global.

No entanto, nas últimas décadas, países de capitalismo avançado têm experimentado uma crescente valorização dos produtos locais, impulsionando a produção artesanal através de pequenas ou médias produções regionais.

Essa demanda explica-se pela insegurança dos consumidores, decorrente das diversas crises vivenciadas no sistema alimentar, e que desta forma passaram a procurar alimentos mais saudáveis e naturais, em contraponto aos industrializados (Contreras, 2011: 27-29).

Neste contexto, a associação com o setor turístico e a busca de estratégias de “marketing” territorial promoveram a difusão de selos e possibilidades de certificações dos produtos, tais como: Denominação ou Apelação de Origem Controlada (DOC/AOP), Identidade Geográfica Protegida (IGP) e Especialidade Tradicional Garantida (ETG). No entanto, o mercado regional inclui outros tantos produtos que não tem a sua formalização promovida ou acolhida por essas estratégias. Essa realidade é clara onde as relações informais estão presentes no processo produtivo, construindo mercados paralelos e alternativos, conforme podemos identificar na região objeto deste estudo.

Na região da Grande Florianópolis, a difusão da produção alimentar regional teve início com o processo histórico de sua ocupação, onde a instalação de colônias de imigrantes apresenta um papel determinante (Jochem, 1992: 32-34). Primeiramente processados com a finalidade de conservação, estes produtos eram destinados quase que totalmente para o escoamento portuário, avançando no século XX, para responder à demanda urbana crescente com o aumento da concentração demográfica na capital Florianópolis e municípios vizinhos.

Para atender a esta procura que se intensificava, os agricultores cultivavam e forneciam alimentos frescos, especialmente frutas, hortaliças, verduras e tubérculos e processavam produtos, tais como: açúcar mascavo, cachaça, farinha de mandioca, geleias de frutas, conservas de hortaliças, massas, pães, biscoitos, queijos e embutidos.

Esses alimentos, conhecidos na região como produtos coloniais, continuam, juntamente com a agricultura familiar, a serem os responsáveis pelo abastecimento alimentar da região e correspondem a um importante fator de identidade regional que vêm acompanhando a história e a formação econômica, social e cultural da região (Dentz, 2015: 2820).

Desta forma, objetiva-se com o presente estudo, identificar as possibilidades de reconhecimento e valorização destes referidos produtos tradicionais, processados de forma artesanal nos municípios da região da Grande Florianópolis.

 

Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa, de caráter qualitativo, caracteriza-se como teórico-empírica baseada na experiência. Essa escolha metodológica se justifica pelas especificidades do tema investigado, que apresenta caráter eminentemente sociocultural e forte relação com a formação socioespacial da área objeto de estudo, visto que a formação das colônias de imigrantes na região da Grande Florianópolis, durante o século XIX, foram responsáveis pelo surgimento de alimentos e formas de processamento e consumo singulares.

Para analisar a realidade socioespacial da área objeto deste estudo propõe-se como referencial teórico-metodológico, o paradigma de formação socioespacial proposto por Milton Santos, onde faz-se necessário considerar os aspectos físicos do espaço onde se processam produtos artesanais em municípios da Grande Florianópolis, bem como a evolução da sociedade que ali se estabeleceu, das suas origens até a atualidade.

Segundo Santos (1982: 12), uma pesquisa fundamentada na formação socioespacial deve ter início com o estudo da gênese desta formação e com a definição do processo histórico responsável por sua atual forma.

Outro aspecto da pesquisa com caráter qualitativo é a compreensão humana. De acordo com Campolin (2005: 25), a pesquisa apresenta caráter qualitativo, quando o seu objetivo é a compreensão do ser humano e da complexa rede que permeia o tecido social. Para Minayo (1994: 22), as pesquisas qualitativas trabalham com o universo de significados, motivos, crenças, valores e atitudes, correspondendo a um espaço mais profundo de relações e inter-relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

Para a coleta de dados realizaram-se levantamentos documentais e bibliográficos em livros, artigos e demais materiais referentes ao tema pesquisado e visitas às bibliotecas dos locais envolvidos para realização de pesquisa bibliográfica e documental específica sobre os municípios/região; entrevistas gravadas em áudio, usando-se um roteiro semiestruturado de perguntas e observações do cotidiano de famílias de produtores de alimentos artesanais residentes em municípios da Grande Florianópolis.

Foram realizadas entrevistas com nove produtores artesanais de alimentos tradicionais (um produtor de embutidos, no município de Antônio Carlos; dois produtores de queijo, um no município de Angelina e outro em Anitápolis; um produtor de pamonha, no município de Antônio Carlos; um produtor de pão de milho, no município de São Bonifácio; um produtor de conservas, em Antônio Carlos; um produtor de biscoitos, em Águas Mornas; um produtor de cachaça em São Pedro de Alcântara; e um produtor de geleias em Rancho Queimado).

Para interpretação dos dados coletados, utilizou-se a metodologia da história oral, introduzida no Brasil na década de 1970 e que consiste na realização de entrevistas gravadas com pessoas que possam testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos ou histórias de vida ou outros aspectos da história contemporânea. Dentre as vantagens da história oral, esta representa uma técnica eficaz para se efetuar um primeiro levantamento de questões, sobretudo em áreas ou localidades ainda pouco exploradas, onde os dados são escassos ou inexistentes (Meihy, 2005: 34). Assim, as entrevistas foram tomadas como fontes para a compreensão do passado, bem como para a análise das atualizações ocorridas, juntamente com os documentos escritos, imagens e outros tipos de registro.

 

A região da Grande Florianópolis

A ocupação do território hoje correspondente à região da Grande Florianópolis foi um processo transcorrido ao longo de quatro séculos, no contexto da grande expansão mundial europeia. A região passou a ser ocupada progressivamente, com destaque para quatro movimentos principais: as ocupações vicentista, açoriana, alemã e migração interna (Cabral, 1970: 62).

Nos vales e encostas próximos a Nossa Senhora do Desterro - atual Florianópolis - os imigrantes foram estabelecidos ao longo do Caminho das Tropas que ligava o litoral ao planalto catarinense. Estes imigrantes foram instalados nesses caminhos com o objetivo de facilitar a ligação entre os núcleos do litoral com o interior (Reitz, 1991: 24).

Desde as primeiras décadas das colônias de imigrantes, Desterro era a principal referência para o escoamento da produção. Desenvolvia-se uma policultura de subsistência, e os excedentes eram fornecidos para a capital do Estado. Neste período, a farinha de mandioca era o principal produto de venda externa, e ainda assim apresentava demanda variável. No entanto, o crescimento das vendas externas passa a beneficiar as pequenas unidades de produção, e o desenvolvimento do Estado ocorre com um comércio voltado para o mercado interno e fortemente ligado ao porto do Rio de Janeiro. A maior participação da província no comércio nacional surge no final do século XIX, quando as colônias se destacam com a produção dos seus excedentes de hortigranjeiros e manufaturados (Hübener, 1981: 17).

No que se refere às formas de processamento de matérias primas, na região destacavam-se os engenhos para a produção artesanal de cachaça, açúcar e farinha de mandioca. A manutenção e continuidade dos engenhos e alambiques na região demonstra que os colonos preservaram certas atividades artesanais desenvolvidas pelos açorianos (Corrêa, 1999: 38).

A região encontra-se dividida em 13 municípios (Mapa 1): Águas Mornas, Angelina, Anitápolis, Antônio Carlos, Biguaçu, Florianópolis, Governador Celso Ramos, Palhoça, Rancho Queimado, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio, São José e São Pedro de Alcântara; possui uma superficie de 7.465 km2, e reúne uma população estimada em 1.012.831 pessoas (Santa Catarina, 2015).

A Grande Florianópolis apresenta uma pluralidade de componentes que fazem da região um complexo e rico objeto de estudo. Em diversas regiões do Estado, desde o oeste até o litoral, os imigrantes e seus descendentes desenvolveram o que Plein e Schneider (2003:46) chamaram de um “modo de vida colonial”, caracterizado por incluir uma forma de organização da atividade e da produção baseadas no trabalho familiar, com uma produção combinada de cultivos e criações. O sistema produtivo baseou-se em uma mistura de agricultura, comércio e artesanato, com o objetivo prioritário da reprodução da unidade familiar.

Esta pequena produção mercantil, conforme definido por Mamigonian (1966: 56) foi responsável por dar início a um novo dinamismo na economia e também por consolidar uma formação socioespacial única.

 

Mapa 1. Localização dos municípios da Grande Florianópolis

 

Localização da área de estudo

Fonte: Duzzioni (2013).

 

Os municípios da região ainda apresentam determinadas características que evocam os tempos dos colonizadores, mas que com o passar dos anos, foram ressignificadas e adaptadas pelos descendentes, e desta forma sustentam-se nas festas populares, na arquitetura local, na dança, no idioma falado e na cozinha tradicional. Estas representações, que quando da colonização, em muitos momentos tiveram de ser escondidas, hoje tornaram-se um diferencial e um atrativo para diversas cidades do Estado de Santa Catarina.

 

Produtos alimentares tradicionais elaborados de forma artesanal

Na região da Grande Florianópolis, durante o período da colonização, os primeiros imigrantes vivenciaram dificuldades de acesso a alguns gêneros alimentícios, bem como para a conservação dos alimentos durante os períodos de entressafra, fato que colaborou para o surgimento de alimentos que eram processados na própria localidade, tais como as geleias de frutas e conservas de hortaliças (Dentz, 2016: 65).

Estes alimentos, processados pelos agricultores nas regiões colonizadas, ficaram conhecidos como produtos coloniais, os quais são entendidos como um conjunto de produtos tradicionalmente processados no estabelecimento agrícola pelos colonos para o autoconsumo familiar (Dorigon, 2008: 39).

São produtos que apresentam algum grau de processamento e são produzidos no interior das propriedades rurais, geralmente pelo produtor e/ou sua família, através de um processo artesanal de produção.

A origem deste termo no Sul do Brasil está fortemente relacionada ao processo de colonização por imigrantes europeus que ao chegar ao país recebiam uma fração de terra denominada colônia e desenvolveram uma tradição de processamento de produtos de origem animal e vegetal como forma de conservação dos alimentos em época que não havia sistemas de refrigeração no meio rural (Guimarães e Silveira, 2010: 4). Assim, colonial faz referência a uma determinada cultura e tradição, relacionada ao saber-fazer dos imigrantes, ao seu modo de vida, suas formas de ocupar o território e fazer agricultura (Dorigon e Renk, 2011: 103).

Tais definições foram debatidas com os entrevistados, onde podemos destacar a fala de uma produtora de conservas do município de Antônio Carlos: “sim, o meu produto é colonial porque eu mesma planto, e eu mesma faço a conserva, e como eu sou agricultora, eu considero o meu produto colonial”.

E ela ainda reforça a ideia, complementando:

industrializado é quando tu tens uma empresa, igual eu [...], eu até posso dizer que meu produto é industrializado, só que o meu vêm direto da roça, e o dele, ele compra, aí já é uma segunda parte que ele faz, não vêm direto dele, não vêm da colônia. Se eu vendo meu produto pra ti industrializar então quem tá produzindo a mercadoria sou eu. Você só está industrializando, eu não, eu estou produzindo e industrializando, então eu considero colonial.

 

Imagem 1. Produção artesanal de conservas no município de Antônio Carlos

Fonte: Dentz, 2014.

 

Já na fala de um produtor de pão de milho da cidade de São Bonifácio, podemos observar uma diferenciada compreensão:

lá pra baixo assim, eu sempre ouço falar que o “caseiro” o pessoal entende melhor, “pega” mais fácil sabe? [...]. Mas eu considero ele [o pão de milho] artesanal, porque caseiro, sei lá... casa tem na cidade, têm no campo...

 

Imagem 2. Produção artesanal de pão de milho no município de São Bonifácio

Fonte: Dentz, 2014.

 

Assim, observamos que o uso do termo colonial em sinônimo ao artesanal é muito comum no Estado, no entanto, artesanal é, genericamente, atribuído à produção em pequena escala. Já o colonial representa um artefato cuja origem está relacionada ao domínio integral de conhecimentos envolvidos no processo produtivo pelo colono, incluindo suas particularidades no uso do território e na produção e processamento dos alimentos (Silva, 2009: 18).

Atualmente, o atributo colonial nem sempre está associado aos colonos ou aos primeiros imigrantes, mas ainda mantém características próprias como a produção em menor escala, a utilização de ingredientes da própria localidade e o modo de fazer artesanal e tradicional.

Neste sentido, quando falamos em modos de fazer tradicionais, faz-se necessária a reflexão sobre o próprio termo tradição, que para Bornheim (1997: 18), é o conjunto de valores dentro dos quais os indivíduos se estabelecem. Dessa forma, a tradição, mesmo apresentando uma sensação de constância e permanência, também sofre alterações compatíveis com as dinâmicas.

La tradition n’est plus le produit du passé, “ une oeuvre d’un autre âge que les contemporains recevraient passivement, mais, selon les termes de Pouillon, un ‘point de vue’ que les hommes du présent développent sur ce qui les a précédés, une interprétation du passé conduite en fonction de critères rigoureusement contemporains ” (Lenclud, 1987 : 118).

Neste contexto, os produtos tradicionais revelam-se como aqueles produzidos através de um saber-fazer transmitido entre gerações, cujos significados, dentro da própria lógica da dinâmica cultural, podem ser alterados ou adaptados, sofrendo modificações, perdas e atualizações para sua permanência nos dias atuais.

Para Schlüter (2003: 12), os produtos compreendidos como artesanais, tradicionais, étnicos, típicos ou regionais, traduzem toda uma herança cultural que se prende a fatores como o clima, a situação geográfica, as especificidades dos solos, a história, a situação político-social da região e do mundo, em diferentes épocas. Nesse sentido, os recursos disponíveis em cada época são um importante fator que possibilita (e influencia) a combinação de matérias-primas, a confecção, os métodos de preparo e de conservação - elementos responsáveis pela origem de diversos produtos representativos dos diferentes povos e culturas.

Nestes produtos a principal diferenciação é o “saber” que transpassa a produção artesanal, onde o conhecimento aplicado é transmitido entre gerações, herdado da cultura familiar ou de um grupo que representa toda uma região, o que acaba por originar produtos com características singulares.

 

Perspectivas para a valorização da produção tradicional artesanal de alimentos como um patrimônio imaterial

Há muitos anos já é reconhecida e difundida a importância de se proteger a memória e as manifestações culturais representadas por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas não apenas de aspectos físicos é que se constitui a cultura de um povo. Existem dimensões relacionadas ao ser, ao saber e ao fazer, contido nas tradições, no folclore, nos hábitos alimentares, nas línguas, nas festas e em diversas manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e ressignificados ao longo do tempo.

Esta categoria que se opõe ao chamado patrimônio de “pedra e cal” e que visa aspectos da vida social e cultural, dificilmente abrangidos pelas concepções mais tradicionais, é identificada como patrimônio imaterial ou intangível.

Fazem parte desta categoria: os lugares, festas, religiões, formas de medicina popular, música, dança, culinária e técnicas. Como o próprio termo sugere, a ênfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida. Não se propõe o tombamento dos bens listados nessa categoria de patrimônio, e sim, o registro de práticas e representações e o seu acompanhamento, para verificação de sua permanência e de suas transformações (Gonçalves, 2002: 23).

Considerando a importância do patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável, a Conferência Geral da UNESCO, quando da sua 32a sessão, realizada em Paris, do dia 29 de setembro ao dia 17 de outubro de 2003, deu origem à Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Esse documento define

Patrimônio Cultural Imaterial como sendo as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e a criatividade humana (UNESCO, 2016).

É importante destacar que a UNESCO reconhece como patrimônio cultural imaterial as comidas típicas - das regiões e países tidos como “Estados Partes”, ou seja, os Estados vinculados à referida convenção - enquanto práticas sociais, rituais e atos festivos, e também técnicas artesanais tradicionais.

Para Müler et al. (2013: 4) o Patrimônio Cultural Imaterial representa uma porção intangível da herança cultural dos povos, formada por bens de caráter dinâmico e intimamente associados às práticas e representações culturais. Neste sentido, a compreensão do termo patrimônio, entre outras possibilidades, é apontada por Contreras (2005: 129) como algo que foi legado pelo passado ou algo que se quer conservar.

Já na visão de Gonçalves (2007: 243), a categoria patrimônio tende a aparecer com delimitações muito precisas. É uma categoria individualizada, sendo inclusive comum sua forte relação com o sentido de “propriedade”. Para o referido autor, o patrimônio apresenta grande vínculo, e sustenta-se através do mercado, que faz uso deste transformando-o em uma espécie de mercadoria e agregando valor ao mesmo.

O mercado, por sua vez, com seus princípios e regras de funcionamento, parece ser um dado fundamental para entendermos os processos de expropriação, de classificação e de exibição dos patrimônios. Isso não significa afirmar que as relações e os valores tradicionais venham simplesmente a desaparecer em favor do mercado, mas também não significa dizer que as relações de mercado existiriam apenas para sustentar o mundo tradicional. Neste sentido, entende-se que as relações e valores tradicionais são transformados no mundo do mercado e podem assumir a forma de mercadorias distintivas.

Os discursos relativos ao patrimônio cultural no Brasil, por décadas, pautaram-se por uma assumida recusa do mercado, uma vez que este era necessariamente associado ao “inautêntico”. No entanto, estes discursos estiveram sempre indiretamente associados à indústria turística. Hoje compreende-se que os objetos classificados como “patrimônio” são ao mesmo tempo, condição e efeito da chamada indústria turística.

Nas análises dos discursos mais modernos sobre o patrimônio cultural, a ênfase tem sido posta no seu caráter “construído” ou “inventado”. Neste entendimento, cada grupo ou família construiría no seu presente o seu patrimônio cultural, com o propósito de articular e de expressar sua identidade e sua memória (Gonçalves, 2007: 247).

Neste sentido, têm-se observado o aumento de movimentos que buscam a conservação, reconhecimento e registro dos produtos locais, processados de forma artesanal e que envolvam as tradições, hábitos e costumes dos povos onde são produzidos.

Dentre as contribuições para a discussão a respeito da preservação do Patrimônio Cultural com relação aos produtos alimentares podemos citar no Brasil ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, criado pela Lei n° 378 de 13 de janeiro de 1937. A área do IPHAN que trata das questões que dizem respeito ao Patrimônio Imaterial é o Centro Nacional do Folclore e da Cultura Popular, dirigido pelo Departamento do Patrimônio Imaterial.

O IPHAN possui um universo bastante diversificado de bens culturais de natureza material e imaterial, sendo que para realizar a identificação, mapeamento e preservação, possui instrumentos bem específicos, como o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

Para que seja realizado o registro de um bem cultural de natureza imaterial, alguns requisitos precisam ser atendidos; dentre eles, a apresentação da solicitação de abertura do processo de uma manifestação formal de anuência com o processo de registro por parte da comunidade envolvida, além do cumprimento das etapas de inventariação e de análise realizadas pelo corpo técnico do IPHAN.

Conforme os documentos do IPHAN, o patrimônio imaterial e intangível se transmite de geração em geração e é constantemente recriado pelas comunidades em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade, contribuindo para a promoção do respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (IPHAN, 2016).

O inventário, por sua vez, apresenta-se como um catálogo de produtos (patrimônio material) provenientes de saberes e de gestos inscritos na memória de gerações e originários de uma tradição (patrimônio imaterial). Este registro representa um primeiro passo, essencial, para o reconhecimento dos produtos culinários como bem cultural e como patrimônio (Csergo, 2011: 17).

Assim, com o intuito de registrar e de patrimonializar um produto, surgem ações no sentido de inventariar e posteriormente certificar tais produtos, objetivando um maior reconhecimento e valorização dos mesmos.

Neste sentido, a certificação é entendida como um sistema de coordenação vertical de cadeias produtivas, visando à garantia de qualidade do produto e/ou processo, de acordo com as necessidades específicas dos consumidores, sejam estes imediatos ou finais.

A adoção de protocolos e selos de certificação, seja de forma obrigatória ou voluntária, está ganhando cada vez mais destaque no cenário rural. Contudo, a crescente busca por mecanismos de certificação de produtos agroalimentares pode assumir diferentes motivações, de acordo com o contexto no qual a produção agrícola se desenvolve e para qual mercado se destina (Leonelli, 2012: 2).

Em geral, observa-se que os pequenos agricultores, baseados na produção familiar e artesanal, procuram aderir a protocolos de certificação com o intuito de agregar valor aos seus produtos, mas, sobretudo, para assegurar a manutenção de um conjunto de valores característicos à atividade e ao território onde estão localizados.

A distinção e certificação de produtos agroalimentares não é um fenômeno recente. Os países europeus, historicamente, relacionam seus produtos agroalimentares ao território, conjugando saberes, tradições e demais especificidades locacionais como forma de diferenciar produtos, mas também valorizar a cultura do meio rural. Entender esta dinâmica é, sobretudo, compreender o valor dos saberes relacionados ao cultivo, manipulação e processamento do produto como parte do patrimônio cultural imaterial dos territórios e comunidades (Abramovay, 2002: 237; Bodiguel, 2002: 3; Sabourin, 2008: 59).

Sendo assim, é preciso ampliar e incentivar a adoção de outros mecanismos que visem aferir legitimidade às especificidades locacionais que apresentem algum tipo de identidade ou outra forma de manifestação singular passível de propriedade intelectual coletiva. Alguns exemplos neste sentido são as Indicações Geográficas, representadas pelas indicações de procedência (IP) e Denominação de Origem (DO), aliado ao registro de bem patrimonial imaterial, conferido pelo IPHAN. Estas iniciativas são relativamente recentes no Brasil e, apesar dos esforços desenvolvidos, o aparato institucional brasileiro para tais questões, além de burocrático e moroso, também padece de uma interlocução integrada, principalmente, no que tange aspectos relacionados à adequação sanitária dos produtos (Leonelli, 2012: 11).

Neste contexto, as indicações geográficas podem constituir um meio de reconhecimento, proteção e divulgação da identidade do território e das especificidades locais e já representam uma estratégia de longa data utilizada na União Europeia, conforme atestam as reconhecidas experiências dos vinhos franceses e dos queijos italianos (Froehlich et al, 2010: 117).

Essa preocupação com a questão da origem e da qualidade dos alimentos na União Europeia incentivou, em 1992, o desenvolvimento de normativas para a regulação comum a todos os países sob o eixo da Política Agrícola Europeia (PAC). Neste sentido estabeleceram-se como base os Regulamentos da Comunidade Econômica Europeia (CEE) n° 2081/92 e (CEE) n° 2082/92, sendo que os objetivos destas normativas são: incentivar a produção agrícola diversificada, proteger os nomes dos produtos contra imitação e utilizações indevidas e auxiliar os consumidores, fornecendo-lhes informações relativas às características específicas dos produtos (WIPO, 2016).

Para pôr em funcionamento esta normativa, a legislação europeia tratou de unificar sob três sistemas distintos: os critérios de qualidade, as normas relativas à proteção das indicações geográficas e as denominações de origem dos produtos agrícolas. Assim foram idealizadas três modalidades de certificados: as que tratam da Apelação de Origem Protegida (AOP), os de Indicação Geográfica Protegida (IGP) e os que regulam as Especialidades Tradicionais Garantidas (ETG).

A Apelação ou Denominação de Origem Protegida (AOP/DOP) faz referência ao nome de uma região, de um lugar determinado e, em casos excepcionais, de um país; e serve para designar um produto agrícola ou um produto alimentício originário desta região, lugar determinado ou país. Dependendo da sua qualidade ou características, fundamental ou exclusivamente ao meio geográfico, e aos seus fatores naturais e humanos, é de obrigação o cumprimento de que a sua produção, elaboração e transformação se realizem nesta zona geográfica.

A Indicação Geográfica Protegida (IGP) faz referência também a uma região, lugar determinado ou país, em casos excepcionais. O produto deverá ser originário de um espaço delimitado e deve possuir uma qualidade, característica ou reputação atribuída a sua origem geográfica. Neste espaço deverá ser realizada ao menos a sua produção, e/ou a transformação e/ou a elaboração. Além disso, o produto pode se beneficiar de uma boa reputação tradicional.

A principal diferença entre a DOP e a IGP é que a primeira é menos flexível, pois todas as etapas devem estar restritas à mesma delimitação geográfica, enquanto que a IGP exige apenas que uma das etapas seja restrita ao mesmo espaço geográfico delimitado (Baptista et al, 2008: 3).

Já a Especialidade Tradicional Garantida (ETG) pode ser compreendida como qualquer produto agrícola ou gênero alimentício tradicional que se beneficie do reconhecimento da sua especificidade pela Comunidade. O produto agrícola ou um gênero alimentício deve ser produzido a partir de matérias-primas tradicionais, ou caracterizar-se por uma composição tradicional ou um modo de produção e/ou de transformação que reflita o tipo de produção e/ou de transformação tradicional.

No Brasil, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) é o órgão responsável que, através de suas Resoluções e Atos Normativos, define as normas de procedimentos e os formulários que deverão ser utilizados para o requerimento de registro de indicação geográfica. No entanto, a partir de 2005, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), ganhou as atribuições de fomentar, acompanhar, certificar e controlar os produtos das IGs (Froehlich et al, 2010: 121).

A primeira indicação geográfica reconhecida pelo Poder Executivo Nacional ocorreu em 2001. Em função da lei de Propriedade Industrial de 1996, o Decreto n° 4.062, de 21 de dezembro de 2001, definiu as expressões “cachaça” e “Brasil” e “cachaça do Brasil” como indicações geográficas (Brasil, 2001).

No ano de 2002 o INPI reconheceu a nomenclatura “Vale dos Vinhedos” como o primeiro certificado nacional de indicação de procedência para vinhos tintos, brancos e espumantes, tendo como titular da indicação a Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (APROVALE) na região da serra gaúcha, no Rio Grande do Sul.

Atualmente, de acordo com o INPI, existem no Brasil 51 produtos com Indicação Geográfica, sendo que dentre estes, 35 são produtos alimentares. Tais números comprovam a recente trajetória do país no que se refere as IGs, mas também demonstram o crescimento de tais demandas (INPI, 2016). Em relação à distribuição espacial, os estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, são os que detêm o maior número de produtos certificados. A trajetória histórica da produção agropecuária em tais estados, somada a presença de cooperativas de produtores dinâmicos, a aliança com universidades e empresas estatais de pesquisa agropecuária, são as variáveis que explicam a supremacia no número de registros (Rocha e Tulla, 2015: 76).

De acordo com a referida Lei da Propriedade Industrial n° 9.279, de 14 de maio de 1996, hoje vigente, a indicação geográfica no Brasil compreende duas espécies de modalidades: a indicação de procedência e a denominação de origem. A indicação de procedência (artigo n° 177) é definida pela lei brasileira como o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço.

Já a denominação de origem (artigo n° 178) é definida pela lei brasileira como o nome geográfico do país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.

Contudo, ainda observa-se que os sistemas de indicação geográfica que estão sendo desenvolvidos no Brasil valorizam os produtos finais em detrimento do saber-fazer tradicional. Desta forma, as indicações geográficas acabam por restringir a produção tradicional a padrões supostamente uniformes, não possibilitando a diversidade potencial entre vários produtores dispersos em um território (Krone e Menasche, 2009: 6).

Assim, percebe-se que dentre as possibilidades de certificações de produtos tradicionais, locais e artesanais, acredita-se que aquela que mais se adequa aos produtos processados na região da Grande Florianópolis é o que confere o Atestado de Especificidade (AS) ou Especialidade Tradicional Garantida (ETG) o qual certifica produtos quanto aos seus princípios tradicionais e culturais, é uma forma de reconhecer um produto obtido através de uma receita ou de um modo de produção tradicionais, que faz parte do processo histórico cultural de construção dos hábitos alimentares da região.

 

A legislação acerca da produção de alimentos tradicionais de forma artesanal

Sabe-se que a qualidade higiênico-sanitária dos produtos alimentares representa uma questão fundamental. No entanto, é preciso distinguir as exigências impostas às produções em escala industrial, daquelas em pequena escala e de caráter artesanal.

Os avanços tecnológicos, em sua maioria, são inacessíveis aos pequenos produtores e acabam por limitar a produção e o mercado de produtos artesanais, restando a estes produtores a circulação informal. Assim, o mercado privilegia os produtos industrializados e marginaliza aqueles produzidos de forma artesanal.

Desde o princípio da sua produção e processamento, os alimentos artesanais apresentam como importante característica o comércio informal, muitas vezes resultado de trocas alimentares, realizadas na própria localidade, entre familiares e vizinhos, ou entre municípios próximos. Este fato deve-se principalmente à forma como tais produtos são processados, que na maioria das vezes não corresponde aquelas exigidas por órgãos reguladores e fiscalizadores. As exigências relacionam-se principalmente às formas e aos locais de processamento, além dos equipamentos e utensílios utilizados na produção, que muitas vezes não estão adequados para a inserção destes produtos no mercado formal.

Durante as observações e visitas de campo realizadas nos municípios da região da Grande Florianópolis foi possível constatar que o uso de tais equipamentos e utensílios rústicos e proibidos pela legislação é frequente, e se dá principalmente pela falta de recursos para a realização de melhorias e adaptações, mas principalmente pela ausência de orientação técnica e adequada aos produtores locais.

 

Imagem 3. Fôrma em madeira para produção de queijo artesanal

 

Imagem 4. Ralador produzido a partir de lata de alumínio e madeira por um produtor artesanal

Fonte: Dentz, 2015.

 

No entanto, observam-se ações de políticas públicas que vêm buscando tirar da informalidade os alimentos tradicionais produzidos de forma artesanal, especialmente no que diz respeito a segurança alimentar. Mas, ao mesmo tempo em que pode garantir maior qualidade à produção, a legislação pode constituir-se como barreira para que a atividade se desenvolva na pequena unidade produtiva dentro das exigências legais.

Assim, existe a necessidade de adaptação das atuais regulações e exigências, da criação de uma fiscalização própria, voltada às produções artesanais e tradicionais, que leve em consideração às questões relacionadas à cultura e a identidade dos grupos sociais, sem perder com isto a segurança entorno da produção dos alimentos. São adaptações que permitirão uma maior inserção dos produtos processados por métodos artesanais nos mercados formais, ampliando desta forma a permanência e a manutenção destes produtos, bem como dos produtores no meio rural.

A segurança dos alimentos trata da garantia de que estes não causarão doenças ao consumidor, quando preparados ou consumidos de acordo com o uso a que se destinam (OPA, 2006). Para tal, preconiza-se um controle de qualidade efetivo, de toda a cadeia alimentar, desde a produção, armazenamento, distribuição, até o consumo do alimento in natura ao processado, bem como os processos de manipulação que se fizerem necessários (Cavalli, 2001: 41-42).

É fator importante salientar que no Brasil, até certo período não havia legislação que regulamentasse a produção e comercialização de produtos alimentícios, e somente a partir de 1950 é que foi implantada esta legislação pertinente, e desde então, os produtores de alimentos artesanais passaram a ser enquadrados na situação de “infratores” (Santos et al, 2012: 15).

No entanto, na perspectiva de reverter tal situação, nas últimas décadas, algumas iniciativas têm sido propostas para formalizar a produção e o processamento de alimentos artesanais. Um exemplo é a Lei n° 12.117 de 07 de janeiro de 2002, que trata da criação de selos que identificam a qualidade e a origem dos produtos agrícolas do estado de Santa Catarina. Com esta Lei, ficaram instituídos no território catarinense os selos: Denominação de Origem Controlada (DOC); Indicação Geográfica Protegida (IGP); Produto de Agricultura Orgânica (ORG); Produto de Origem Familiar (FAM) e Certificado de Conformidade (CCO). Dentre os selos criados, destacam-se o de Produto de Origem Familiar (FAM) que trata do produto agrícola ou alimento cujo atributo se deve essencialmente ao caráter familiar e artesanal de sua produção, processamento, transformação ou elaboração e o Certificado de Conformidade (CCO) que constitui o produto agrícola ou alimento que apresenta atributos específicos de qualidade e foi gerado conforme normas de produção, transformação, fabricação ou embalagem previamente fixadas para a obtenção destes atributos de qualidade (ICMBIO, 2002).

Outra medida que surtiu efeito positivo foi o chamado manifesto “colher de pau”, de autoria do antropólogo e museólogo Raul Lody, que elegeu o referido utensílio por sua indispensabilidade na cozinha brasileira, sendo utilizado no dia a dia dos lares, seja no campo ou na cidade. O utensílio foi o elemento simbólico da campanha “Comida é Patrimônio”, lançada pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). O documento sintetiza de forma clara e acessível as dificuldades enfrentadas na produção de alimentos tradicionais, artesanais e de base familiar.

Um dos desdobramentos desse manifesto foi a revisão da publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 49 de 2013, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Esta RDC trata sobre a inclusão produtiva com segurança sanitária e é destinada à regulamentação da produção de alimentos pelos microempreendedores individuais (MEIs), empreendimentos familiares rurais e empreendimentos da economia solidária.

Na região da Grande Florianópolis, as dificuldades relacionadas à legislação também são vivenciadas, fato que dificulta a própria identificação e reconhecimentos dos produtores artesanais e dos alimentos por eles processados, pois em função da insegurança imposta pela questão da inadequação à legislação vigente, muitos produtores não divulgam seus estabelecimentos e os produtos que são processados no local, pelo receio de terem suas mercadorias apreendidas e seus locais de produção fechados.

Fica evidente, neste sentido, que a relação de confiança estabelecida entre produtores e consumidores, muitas vezes criada por um imaginário do produto ideal e da memória afetiva, representa um dos principais fatores que contribui para a permanência dos produtos tradicionais, processados de forma artesanal no mercado. Mas certamente, esta condição não garante segurança aos produtores e nem mesmo o acesso dos produtos aos mercados, e desta forma a produção e manutenção destes produtos ficam ameaçadas, estando à mercê de uma legislação que se mostra inadequada ao tipo de produção desenvolvida.

 

Conclusões

Entendemos que a produção artesanal de alimentos tradicionais representa um importante patrimônio cultural e imaterial. No entanto, as atuais formas de reconhecimento, registro e valorização de tais produtos, demandam ações mais direcionadas e concretas.

No caso das certificações e selos formais, por exemplo, estes instrumentos podem ser visto como importantes ferramentas para agregar valor à produção agrícola e possibilitar maior inserção e diferenciação dos produtos no mercado. Porém, a adequação a protocolos específicos exigidos no mercado internacional pode inibir, ou até mesmo impedir a participação de pequenos produtores, apresentando, neste caso, uma relação excludente.

Podemos observar que a maioria das políticas oficiais de valorização dos produtos locais e tradicionais, principalmente aquelas relacionadas à concessão de selos de identificação de qualidade e origem, dispõe de regras rígidas, com o estabelecimento de controles exigentes que em muitos casos tornam-se obstáculos e acabam por ameaçar a manutenção da tradição, principal fator que estes mecanismos deveriam preservar.

Assim, verificamos que ainda que haja um movimento de valorização destes produtos, as regulamentações sanitárias e fiscais, bem como as ferramentas e estratégias que até então vêm sendo utilizadas, visam, sobretudo, padronizar os produtos e seus processos, não dando conta da especificidade característica dos produtos artesanais e tradicionais.

Desta forma, vislumbramos que medidas de salvaguarda, como as propostas pela Convenção da UNESCO, possam representar uma possibilidade tangível, pois estas visam adotar uma política geral para promover a função do patrimônio cultural imaterial na sociedade e integrar sua salvaguarda com programas de planejamento; criar organismos para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território; fomentar estudos científicos, técnicos e artísticos, bem como metodologias de pesquisa para a salvaguarda eficaz do patrimônio cultural imaterial, e em particular do patrimônio cultural imaterial que se encontre em perigo; adotar medidas de ordem jurídica, técnica, administrativa e financeira adequadas para: favorecer a criação ou o fortalecimento de instituições de formação em gestão do patrimônio cultural imaterial, bem como a transmissão desse patrimônio nos foros e lugares destinados à sua manifestação e expressão; garantir o acesso ao patrimônio cultural imaterial, respeitando ao mesmo tempo os costumes que regem o acesso a determinados aspectos do referido patrimônio; criar instituições de documentação sobre o patrimônio cultural imaterial e facilitar o acesso a elas.

Com isso, poderão ser realizadas pesquisas e formuladas políticas públicas integradas que fomentem o reconhecimento das práticas tradicionais e do saber-fazer, através da valorização de características tais como tipicidade, qualidade e tradição, adequadas às realidades locais de produção e processamento artesanal de produtos.

A perspectiva de reconhecimento da produção artesanal de alimentos tradicionais como um patrimônio cultural imaterial representa uma importante ferramenta de valorização das culturas locais e um tema atual e relevante para a realização de novos estudos.

 

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*El presente artículo presenta resultados de la investigación de tesis desarrollada en el Programa de Post Grado en Geografía, en la Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bajo orientación del profesor Clécio Azevedo da Silva, integrante del Departamento de Desarrollo Regional y Urbano, comenzado el año 2014 y será concluido en 2017. También fueron utilizadas informaciones de artículos presentados por la autora en participación de eventos (Dentz, 2015 e Dentz, 2016).

Recibido: 3/8/2016 Aprobado: 11/1/2017

 


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