Carla Sequeira.
"A Denominação de Origem «Porto» (Alto Douro, Portugal): a acção do ministro Antão de Carvalho" / "La Denominación de Origen <<Oporto>> (Alto Douro, Portugal): la acción del ministro Antão de Carvalho" / "The «Porto» Apellation of Origin (Alto Douro, Portugal) : the role of the Minister Antão de Carvalho".
RIVAR Vol. 2, N° 5, ISSN 0719-4994, IDEA-USACH, Santiago de Chile, mayo 2015, pp.83-98


Artículos

 

A Denominação de Origem «Porto» (Alto Douro, Portugal): a acção do ministro Antão de Carvalho*

La Denominación de Origen «Oporto» (Alto Douro, Portugal): la acción del ministro Antão de Carvalho

The «Porto» Appellation of Origin (Alto Douro, Portugal): the role of the Minister Antão de Carvalho

 

Carla Sequeira**

**Portuguesa. Doutora em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigadora do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» (Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Portugal). Bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Correo electrónico: carla.m.sequeira@sapo.pt


Resumo

Antão Fernandes de Carvalho (1871-1948) foi um líder político destacado da Região Demarcada do Douro entre os finais da Monarquia (1908) e o início do Estado Novo (1926), que alcançou projecção nacional, na qualidade de deputado, senador e ministro. Muito próximo das elites políticas locais do seu tempo, procurou usar a rede de sociabilidades em que se inseria a favor dos interesses do Alto Douro. Nos diversos cargos políticos que exerceu, como presidente do município de Peso da Régua, como parlamentar, ou como presidente da Comissão de Viticultura da Região Duriense, assumiu-se sempre como líder do movimento regional de defesa da denominação de origem «Porto». No presente artigo, analisaremos a sua acção enquanto ministro da Agricultura, de que forma alcançou este novo espaço de poder, e respectivas consequências na perspectiva dos interesses regionais e do debate entre o Alto Douro e outros grupos de interesse ligados ao sector vitícola.

Palavras-chave: Alto Douro, rede de sociabilidades políticas, questão duriense, defesa da denominação de origem «Porto»


Resumen

Antão Fernandes de Carvalho (1871-1948) fue un destacado líder político de la Región Demarcada de Douro, entre finales de la Monarquía (1908) y principios del Estado Nuevo (1926), que alcanzó renombre en todo el país como diputado, senador y ministro. Por encontrarse muy próximo a las élites políticas locales de su tiempo, procuró utilizar su red de relaciones a favor de los intereses del Alto Douro. En los diferentes cargos políticos que ejerció —como presidente del municipio de Peso da Régua, como parlamentario y como presidente de la Comisión de Viticultura de la Región Duriense- actuó siempre como el líder del movimiento regional de defensa de la denominación de origen «Oporto». En este artículo, analizamos su actuación como ministro de agricultura, cómo alcanzó este nuevo espacio de poder y cuáles fueron las consecuencias para los intereses regionales y para el debate entre el Alto Douro y otros grupos de influencia vinculados al sector vinícola.

Palabras clave: Alto Douro, red de relaciones políticas, cuestión duriense, defensa de la denominación de origen «Oporto»


Abstract

Antão Fernandes de Carvalho (1871-1948) was a prominent political leader of the Douro Demarcated Region between the late monarchy (1908) and the early Estado Novo (1926), known in Portugal for his role as a member of Parliament, senator and minister. As he was very close to the local political elites of his time, he sought to use his social, political connections for the benefit of Alto Douro. In his various political offices, as mayor of Peso da Régua, member of Parliament, or as President of the Wine Production Committee of the Douro Region, he always led the regional movement defending the «Porto» appellation of origin. This paper looks into his activity as Minister of Agriculture, how he reached the positions in this new area of power, and its consequences in light of regional interests and the debates between the Alto Douro and other interest groups related to the wine sector.

Key words: Alto Douro; network of political connections; the Douro issue; defense of the «Porto» appellation of origin


 

Introdução

Conforme referido no Resumo, o objectivo do presente artigo consiste em compreender a acção de Antão de Carvalho, enquanto ministro da Agricultura, em defesa da denominação de origem «Porto». Nesse sentido, foram utilizadas diversas fontes documentais coevas, com particular relevo para o fundo da Comissão de Viticultura Duriense (organismo a que Antão de Carvalho presidiu durante 16 anos, entre 1910 e 1926), a imprensa (nacional e regional) e legislação produzida por Antão de Carvalho. Passemos, pois, após uma breve contextualização histórica do tema em estudo, a analisar de que forma Antão de Carvalho alcançou este novo espaço de poder e respectivas consequências na perspectiva dos interesses regionais e do debate entre o Alto Douro e outros grupos de interesse ligados ao sector vitícola.

Ao iniciar-se a década de 1920, assistia-se a uma expansão do comércio de vinho do Porto, marcada pelo aumento das exportações, que se prolongaria até finais da década. Em paralelo, a produção atravessava uma das mais graves crises, motivada pelos baixos preços oferecidos pelo sector comercial, a que se somavam as fraudes e falsificações.

Em consequência, o ano de 1921 mostrar-se-ia particularmente agitado no Alto Douro, do ponto de vista social, com as populações e municipalidades a exigir medidas por parte do poder central.

Foram várias as estratégias ensaiadas pelos líderes regionais no sentido da defesa dos interesses durienses, desde a pressão exercida sobre o Governo, através de uma rede de sociabilidades políticas que se estendia ao Parlamento, até à mobilização das populações e municipalidades por parte da Junta de Defesa do Douro.

Entre os notáveis locais sobressaía Antão de Carvalho, destacado líder político com responsabilidades na proclamação da República no Alto Douro, em 1910, presidente da Comissão de Viticultura da Região Duriense1, deputado e senador entre 1911 e 1915, e novamente deputado em 1919. A esta importante personalidade coube ainda a tarefa de organizar e dirigir o movimento reivindicativo em defesa da marca «Porto» ao longo de todo o primeiro terço do século XX. Para tal, serviu-se da rede de sociabilidades políticas que foi construindo desde os tempos de estudante universitário em Coimbra, onde conviveu com alguns dos principais vultos do republicanismo português que seriam chamados a desempenhar tarefas governativas após 1910.

Para Antão de Carvalho, a crise vivida na Região Demarcada do Douro resultava da superabundância de vinhos, quer nas adegas regionais, quer nos armazéns dos exportadores, do retraimento de capitais e do descuido dos governos face às questões económicas mais importantes para o país, particularmente a da exportação do vinho do Porto. Em seu entender, o desenvolvimento da exportação após a I Grande Guerra provocara um excessivo fabrico de vinhos generosos, com consequências trágicas, pois as circunstâncias de excepção haviam terminado e dera-se o desequilíbrio entre produção e consumo. Perante este cenário, Antão de Carvalho, como líder da Junta de Defesa do Douro, encetou múltiplas iniciativas institucionais junto do poder central no sentido de obter uma solução. Contudo, a concretização das reivindicações regionais ficaria prejudicada pelas conjunturas políticas que atravessaram o ano de 1921.

 

A nomeação para Ministro da Agricultura

No rescaldo do Outubrismo2, Antão de Carvalho viria a ser convidado para ocupar o cargo de Ministro da Agricultura. Era a rede de sociabilidades a funcionar a favor da causa regional, uma vez que o líder da conspiração - o tenente-coronel Manuel Maria Coelho -era amigo de longa data de Antão de Carvalho. Considerando uma oportunidade única para a causa duriense, Antão de Carvalho aceitou este novo espaço de poder. Depois de todos os esforços e movimentações empreendidos, era tempo de deixar o trabalho de bastidores3. Viria a integrar os executivos presididos por Manuel Maria Coelho, entre 19 de Outubro e 5 de Novembro de 1921, e Carlos Maia Pinto, de 5 de Novembro a 16 de Dezembro de 1921 (Guimarãis et al., 2000: 199-204).

Em entrevista ao jornal A Pátria4, Antão de Carvalho traçava o seu programa político. Começava por se mostrar surpreendido com a sua nomeação para Ministro da Agricultura, uma vez que abandonara a actividade política dedicando-se exclusivamente à questão vitícola. Declarava não estar relacionado com o movimento revolucionário de 19 de Outubro, de cariz radical, e estabelecia, inclusive, um distanciamento da República relativamente aos acontecimentos que se haviam verificado. Passava, depois, a revelar alguns dos principais pontos do seu programa ministerial. Considerava necessário substituir o processo de importação de trigo exótico, que ficava a cargo do Estado, por um sistema mais económico e com a intervenção do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Sobre abastecimentos, considerava o regime de comércio livre mais prático e mais vantajoso. Defendia ser missão do Governo conseguir o equilíbrio da produção agrícola, através da diminuição da área ocupada com vinha, substituindo-a por trigo. Para estimular os lavradores nesse sentido, defendia o lançamento de impostos sobre os terrenos incultos, abandonados ou mal cultivados, ou a concessão de prémios de cultura para quem se dedicasse ao cultivo de cereais. Prometia dedicar todo o interesse às Caixas de Crédito Agrícola e à urgente necessidade em dotá-las com o respectivo capital dada a sua função económica essencial para o desenvolvimento da agricultura. Assegurava também que iria dedicar-se às Escolas Móveis Agrícolas, que não acarretavam grande despesa ao Estado e que permitiam colmatar as lacunas de ensino agrícola das escolas agrícolas em geral.

 

Pensamento e acção ministerial

A motivação de Antão de Carvalho ao aceitar a pasta da Agricultura era, como já referimos, a defesa da Região Demarcada do Douro. Procurando formar um "Governo dos interesses" (Madureira, 2002: 38), orientou a sua acção principalmente no sentido de concretizar reivindicações durienses de longa data. Com esse intuito, começou por ouvir a Região, através de um questionário enviado, pela Comissão de Viticultura da Região Duriense, a todos os organismos da Região Demarcada do Douro. Estabelecia, dessa forma, uma governação em rede, o que corroborava a tese de um "Governo dos interesses"5. O questionário reflectia as preocupações regionais, muitas vezes feitas sentir em comícios ou reuniões conjuntas: circulação/ exportação da baga de sabugueiro, utilizada na falsificação de vinhos; graduação dos vinhos virgens expostos à venda nas principais cidades do país; cooperação regional nas missões de propaganda comercial empreendidas pelo Governo no estrangeiro. A legislação publicada resultaria das repostas ao inquérito, com as quais Antão de Carvalho afirmava identificar-se.

A primeira tarefa a que se dedicou foi a revisão do regulamento para a produção e comércio dos vinhos do Porto, iniciada em 1918 mas nunca finalizada. Em estratégia consertada com a Comissão de Viticultura da Região Duriense, o novo regulamento seria rapidamente elaborado e publicado (decreto n.° 7934, publicado no Diário do Governo 1a Série, n° 255, de 16 Dezembro 1921: 1556 a 1577). Entre as medidas contidas no novo decreto, destacava-se a obrigatoriedade do certificado de origem para os vinhos durienses expedidos para fora da Região, e o alargamento das atribuições da Comissão de Viticultura da Região Duriense, ampliando o âmbito territorial de acção e reforçando as suas competências de fiscalização e regulação do sector. Assim, passava a ser da sua competência fiscalizar a entrada das aguardentes na Região Duriense, requisitar das autoridades administrativas e fiscais ou de qualquer força pública o auxílio necessário para o desempenho das suas atribuições, criar agências destinadas à colocação dos produtos durienses, e em especial do vinho do Porto, nos mercados internos e externos, fornecer à lavoura duriense aguardente nacional e sustentar nos mercados externos enviados comerciais e de propaganda.

Relativamente ao Alto Douro, fez ainda publicar o decreto n° 7853 (Diário do Governo 1a Série, n° 242, de 30 Novembro 1921: 1423), dissolvendo a Comissão Geral de Cultura do Tabaco no Douro. Pretendia, em primeiro lugar, dar execução à legislação (datada de 1884) que criara a Comissão Geral da Cultura do Tabaco. A actual Comissão há muito não exercia funções por diversos motivos, entre os quais o falecimento da maior parte dos seus vogais. Além disso, o regulamento para a fiscalização da cultura do tabaco no Douro, aprovado por decreto de 20 de Março de 1884, precisava de ser remodelado de modo a facilitar uma cultura que fora permitida como medida de protecção à Região Duriense. A necessidade de um novo regulamento fora reconhecida pelo Governo ao nomear, em 1913, uma comissão de parlamentares e funcionários especializados que procedessem ao estudo de um projecto com esse fim. Agora, dissolvia-se a Comissão Geral da Cultura do Tabaco no Douro e nomeava-se uma nova Comissão, da qual fariam parte alguns dos seus amigos políticos, entre os quais António Cândido Pires de Vasconcelos, António Eduardo Vieira de Sousa, António Fernandes Massa, Carlos Richter, Domingos Monteiro Pereira e Jerónimo de Matos Ribeiro dos Santos. Apesar disso, Antão de Carvalho relevaria uma postura acima de interesses políticos na defesa dos interesses regionais, ao escolher José da Mota Marques Júnior para presidir à nova Comissão Geral do Tabaco. A nomeação de Mota Marques, que era também membro da Junta de Defesa do Douro, provocaria celeuma "entre os elementos revolucionários"6 por não ter ainda aderido à República. Antão de Carvalho desvalorizou essa questão, pondo em evidência a sua competência, demonstrada no âmbito do acordo comercial com a Alemanha. A nova Comissão ficava incumbida de, em 30 dias, apresentar um projeto de regulamento para a fiscalização e cultura do tabaco no Douro, em substituição do de 18847.

Antão de Carvalho considerava da maior importância, em virtude do seu valor económico, dotar a Região Demarcada do Douro com uma Escola Agrícola Móvel8. Esta seria criada pelo decreto n° 7932 (Diário do Governo 1a Série, n° 255, de 16 Dezembro 1921: 1550) e teria sede em Peso da Régua. Ficava na dependência da Direcção-geral de Instrução Agrícola e aproveitava os recursos de pessoal e material adstritos à Escola Móvel Agrícola do Porto, que era extinta em virtude das difíceis circunstâncias de tesouraria e ineficácia dos seus serviços. Os seus objectivos programáticos contemplavam a sua transformação num organismo fixado na Região, com o propósito de realizar o seu estudo agronómico e fomentar o progresso agrícola, aproximando-se progressivamente de uma Estação Experimental para estudo e ensino regionais, conforme previsto na carta de lei de 18 de Setembro de 1908.

Tal como inscrito no seu programa ministerial, Antão de Carvalho procurou tornar efectiva a criação de uma delegação do Crédito Agrícola no Douro. Quando assumiu o cargo, a sua principal preocupação foi dotar o respectivo fundo com o capital necessário ao funcionamento da instituição, no valor de 10 mil contos, provenientes do Ministério das Finanças. Em diversos conselhos de ministros, procurou conseguir a dotação financeira necessária para o seu ministério, tendo em vista principalmente a quantia indispensável ao Crédito Agrícola9. Contudo, veio a verificar-se que o Ministério das Finanças não tinha disponibilidade para libertar o montante referido. Em face disto, Antão de Carvalho considerava que tinha cumprido, dentro das suas possibilidades de acção, "as reclamações que à região do Douro mais particularmente interessavam"10.

Além dos diplomas legais dedicados aos interesses durienses, foram ainda tomadas medidas de alcance geral para a viticultura nacional. Em primeiro lugar, procurou pôr fim à polémica em torno da utilização da baga de sabugueiro e da falta de regulamentação do artigo 45° da lei de 18 de Setembro de 1908, que proibia a sua comercialização. Várias reclamações se tinham feito ouvir contra a sua venda, trânsito e exportação. Apresentava-se como razão o facto de ser exportada em larga escala para países consumidores de vinhos portugueses, bem como para países vitícolas onde eram praticadas imitações e falsificações das marcas regionais portuguesas. Os organismos representativos da Região Demarcada do Douro, única região produtora de baga, pronunciavam-se maioritariamente pela imediata regulamentação do citado artigo 45°. Nesse sentido, foi publicado o decreto n.° 7851 (Diário do Governo 1a Série, n° 242, de 30 de Novembro de 1921: 1421-1422), que mantinha a proibição da venda da baga de sabugueiro no continente e províncias ultramarinas, acrescentando o impedimento da sua circulação no país e exportação, impondo penas severas aos infractores (pena de prisão durante seis meses, não remível, e multa de 1 escudo por quilo de baga que fosse apreendida). A fiscalização das disposições legais ficava a cargo dos agentes de fiscalização da Comissão de Viticultura da Região Duriense, competindo-lhes a apreensão da baga encontrada em contravenção. Também os chefes, directores ou outros empregados ficavam obrigados a apreender baga encontrada ou submetida a despacho em estações de caminho-de-ferro, alfândegas, postos aduaneiros ou barreiras. As autoridades e agentes administrativos, fiscais e policiais ficavam com a incumbência de auxiliar, dentro das suas áreas de jurisdição, o serviço de fiscalização decretado.

Pelo decreto n.° 7852 (Diário do Governo 1a série, n° 242, de 30 Novembro 1921: 14221423), pretendeu dar concretização aos pedidos de providências contra os desdobramentos e falsificações de vinhos de pasto praticadas nas cidades de Lisboa e Porto; ao mesmo tempo, pretendia colmatar a proibição de destilação dos vinhos com menos de 11°. O novo decreto constituía uma espécie de decalque aperfeiçoado do decreto n° 7746, publicado pelo governo anterior, que havia levantado reclamações por parte de associações, sindicatos agrícolas e viticultores da Região Demarcada do Douro, e comerciantes de vinhos. Antão de Carvalho considerava que o decreto n° 7746, ao proibir a venda de vinhos com graduação inferior a 11°, criara uma situação de injustiça para o Alto Douro devido à proibição da destilação dos vinhos de consumo. Por isso, depois de ouvido o Conselho Superior de Agricultura, decretava a proibição de expedir e expor à venda nos estabelecimentos de venda a retalho, vinhos de consumo com graduação alcoólica inferior a 11°, exceptuando os vinhos da região do Douro legalmente demarcada, os vinhos verdes e os de Colares, quando se provasse a sua proveniência, e os de pasto engarrafados de marcas registadas à data do decreto. A observância das disposições competia à Direcção-geral dos Serviços Agrícolas, autoridades e agentes administrativos, fiscais e policiais, Câmaras Municipais, delegados e subdelegados de saúde, comissões de viticultura, Associação Central de Agricultura Portuguesa, Uniões e Federações dos Sindicatos Agrícolas. O vinho encontrado em contravenção seria apreendido, não só no estabelecimento mas também no armazém ou depósito que o fornecesse, devendo o auto e amostras ser enviados à fiscalização dos produtos agrícolas em 24 horas. O processo judicial decorrente teria de ser julgado no prazo máximo de 60 dias. Provando-se a infracção, seria punida com a perda do vinho e com multa de 50 centavos por cada litro apreendido. A reincidência seria punida com o dobro da multa e encerramento do estabelecimento por um período de 15 a 30 dias. Em reincidências subsequentes, a multa seria progressiva, acompanhada do encerramento do estabelecimento decretado por um juiz, por um prazo nunca inferior a 3 meses nem superior a 1 ano. Depois da sentença, o vinho seria entregue ao Director da Estação Agrícola para destilação e venda da aguardente em hasta pública.

Enquanto Ministro da Agricultura, Antão de Carvalho dedicou-se também à questão das subsistências. Após análise das soluções tentadas por executivos anteriores, concluiu que a acção do Estado se revelara um fracasso, acarretando prejuízos para o tesouro público. Para tentar moralizar o sistema, intentou a criação de um novo organismo que teria por base a cooperação, na função reguladora de preços, entre representantes da produção e dos consumidores e o Estado. Tratava-se da Junta de Provisão Pública, em substituição do Comissariado Geral dos Abastecimentos, que era extinto. Contudo, acabaria por se transformar num facto político; apesar de aprovado em Conselho de Ministros e pelo Presidente da República, os protestos provenientes de alas políticas conservadoras fizeram com que o Ministro das Finanças, que exercera o cargo de Comissário Geral dos Abastecimentos, não quisesse assinar. O caso acabaria por ficar sem solução devido à queda do Governo11.

No mesmo âmbito, empenhou-se no estudo do regime cerealífero, de que viria a resultar o decreto n° 7849 (Diário do Governo 1a série, n° 242, de 30 Novembro 1921: 1418-1420). Por este diploma, pretendia-se regulamentar o comércio dos trigos produzidos na ilha da Madeira e no arquipélago dos Açores, que gozavam de um regime cerealífero especial. Tentava-se, dessa forma, suprir as necessidades de cereais, decorrentes da estagnação da produção e da crise de subsistências resultante da I Grande Guerra, que fizera elevar o custo do trigo exótico acima do legalmente estabelecido, provocando a retracção da oferta no mercado nacional, escassez no manifesto e nas moagens e consequente carência de pão. O recurso ao trigo exótico tornara-se "absolutamente indispensável" (Marques, 1978: 141). O Estado interviera fixando os arrolamentos, estabelecendo a obrigatoriedade dos manifestos de trigo e farinhas e tabelando o preço máximo do trigo. Dificuldades no comércio levariam o Governo a autorizar a importação até certo limite, baixando os direitos de importação. No final, o Estado acabaria por se tornar importador e abastecedor das fábricas e moagens. Para Antão de Carvalho, o exclusivo estatal da importação dos trigos acarretara enormes prejuízos ao erário público. Com o seu decreto n° 7849, pretendia libertar o Estado do encargo de abastecer de trigos e farinhas as populações dos Açores e Madeira. Assim, definia-se a tabela reguladora dos preços do cereal produzido na ilha da Madeira e nos Açores, as regras da chamada e manifesto dos trigos insulares para venda anualmente, bem como as normas de matrícula na Direcção-geral dos Serviços Agrícolas das fábricas de moagem açorianas. Estabeleciam-se as condições necessárias para que as fábricas pudessem ser matriculadas e determinava-se a admissão à matrícula dos negociantes que quisessem ser importadores de trigo sempre que, nos Açores, as fábricas existentes tivessem capacidade produtiva inferior às necessidades de consumo. Obrigava-se os fabricantes e negociantes matriculados no arquipélago dos Açores e ilha da Madeira a comprarem todo o trigo insular manifestado ao preço estabelecido na tabela em vigor, sob pena de eliminação da matrícula sempre que se provasse contravenção. Autorizava-se a importação do cereal apenas aos negociantes de farinha devidamente matriculados e aos lavradores para semente. O Governo fixaria a quantidade a importar, por proposta do Conselho Superior de Agricultura, tendo em vista a quantidade total necessária para consumo e a quantidade de trigo insular manifestada. Determinava-se que sempre que houvesse reclamação e se averiguasse, por inquérito, que havia falta de farinha na Madeira ou nos Açores ou que era vendida por preço excessivo, o Governo poderia decretar a importação da quantidade necessária para consumo por conta do Estado ou mediante concurso. Por fim, determinava-se a criação, no Funchal e nos distritos açorianos, de uma delegação da Direcção-Geral do Comércio Agrícola que proporia ao Governo, sempre que as circunstâncias o exigissem e no início de cada ano cerealífero, os diagramas de farinha e tipo de pão a adoptar e respectivos preços.

Antão de Carvalho teve igualmente em vista o abastecimento do território continental, aproveitando a baixa de preços do trigo exótico, mas não teve sucesso devido à oposição do Ministro das Finanças, alegando dificuldades de tesouraria, e do Banco de Portugal, que "se recusou a prestar garantias ao Estado para realização do contrato a longo prazo em magníficas condições"12. Em alternativa, autorizou a importação aos industriais da província "que haviam deixado de receber desde há muito as cotas que por lei lhe pertenciam no rateio dos trigos importados"13.

Também relacionado com as subsistências, Antão de Carvalho procurou promover o aproveitamento dos baldios e incultos. Segundo Oliveira Marques, o problema da reforma agrária (reestruturação da propriedade e fomento agrícola) atravessou toda a Primeira República portuguesa (Marques, 1978:68-69). Neste contexto, a questão dos incultos e/ou baldios revestiu-se de importância fundamental, daí decorrendo um vasto corpo legislativo, ineficaz, no entanto, em virtude do desconhecimento rigoroso da área e valor dos baldios. Uma extensa área de terrenos, susceptíveis de utilização, estava abandonada e improdutiva, apesar das facilidades concedidas pela lei. A crise cerealífera devia-se, em parte, ao abandono desses terrenos; urgia, pois, intensificar a produção e estimular a iniciativa particular que a isso se propusesse. O decreto assinado por Antão de Carvalho (decreto n° 7933, publicado no Diário do Governo 1a série, n° 255, de 16 Dezembro 1921: 1551-1556) inscrevia-se no esforço legislativo com vista ao fomento agrícola, embora não fosse completamente original. O objectivo principal era resolver o problema económico português através do aumento da produção e da valorização das abundantes fontes de riqueza. Numa conjuntura política radical, Antão de Carvalho, inspirando-se na lei de 7 de Agosto de 1913, apresentava uma solução legislativa que insistia no aproveitamento dos baldios que não fossem indispensáveis ao logradouro comum nem destinados à arborização, dividindo-os em glebas concedidas pelos municípios a usuários em regime de enfiteuse.

Por fim, Antão de Carvalho procedeu à reforma do regime açucareiro, procurando acabar com a especulação (decreto n° 7850, publicado no Diário do Governo 1a série, n° 242, de 30 Novembro 1921: 1421). O regime açucareiro, estabelecido pelos decretos n° 6253 (9 de Abril de 1920) e 6911 (8 de Setembro de 1920), não trouxera resultados práticos, quer à indústria e comércio, quer ao consumidor, em virtude das suas medidas restritivas assentarem em "bases artificiais" exploradas pelos especuladores. Por outro lado, Antão de Carvalho mostrava-se contra o "monopólio de excepção"14 que, excluindo a livre concorrência, encarecia o produto e provocava a sua rarefacção no mercado. Era, pois, indispensável assegurar de forma eficaz o abastecimento com açúcar das colónias portuguesas, cuja produção era superior às necessidades. Assumia-se uma perspectiva protecionista, considerando que convinha ao Estado dispor dos meios necessários para corrigir abusos e manter a sua função reguladora. O objectivo era garantir ao público um preço razoável, criando para isso condições de justa concorrência entre os açúcares coloniais e entre estes e os estrangeiros, o que passava por auxiliar o transporte de açúcar colonial. Com o seu decreto n° 7850, Antão de Carvalho procurou garantir o abastecimento do mercado nacional, a par da impossibilidade de aumento dos preços. Com base no Parecer da comissão nomeada por portaria de 21 de Janeiro de 1921, decretava-se a livre importação, trânsito e comércio de açúcar nacional ou estrangeiro, obrigando os produtores de cana-de-açúcar de Moçambique e Angola a enviar para Portugal continental mensalmente, até 30 de Abril de 1922, 3100 toneladas (2600 de Moçambique, e 500 de Angola), sob pena de ficarem proibidos de exportar para o estrangeiro. Quando considerado conveniente, o Ministério da Agricultura poderia requisitar mensalmente, quer aos produtores coloniais, quer aos importadores, as ramas de que carecesse para uso dos armazéns reguladores.

Quando abandonou o ministério, Antão de Carvalho deixou ainda prontos para última redacção (sancionados em Conselho de Ministros) outros diplomas, tendentes a estabelecer o equilíbrio das culturas através da restrição da cultura da vinha, na tentativa de resolver a crise de abundância.

A legislação produzida por Antão de Carvalho dava cumprimento ao programa a que se propusera quando fora nomeado Ministro da Agricultura. De modo particular, e a exemplo de outras funções institucionais e políticas que desempenhou, Antão de Carvalho mostrou-se, no exercício do cargo ministerial, um activo defensor dos interesses durienses. Essa atitude traria, como consequência, o reconhecimento por parte das populações e municipalidades da Região Demarcada do Douro.

 

Quinta da Foz - Pinhão (Alto Douro, Portugal). Fonte: Foto Egídio Santos

 

A homenagem inter-regional

Em 28 de Dezembro de 1921, verificou-se uma reunião conjunta de todos os organismos de natureza agrícola e comercial da Região Demarcada do Douro, nos paços do concelho de Peso da Régua. O ponto de ordem era a exposição, por Antão de Carvalho, da sua actividade enquanto Ministro da Agricultura. Na assistência encontravam-se vogais da Comissão de Viticultura da Região Duriense, representantes de Câmaras Municipais e sindicatos agrícolas e inúmeros viticultores. Na sua intervenção, Antão de Carvalho começou por afirmar que aceitara a sua nomeação por entender que, dessa forma, colaboraria num projecto de "salvação nacional" e contribuiria para o "ressurgimento político e económico"15. De seguida, descreveu a acção política dos dois ministérios de que fizera parte, prestando homenagem aos seus colegas de Governo, em particular aos ministros dos Negócios Estrangeiros, do Comércio e da Justiça.

Após ter exposto as medidas que promulgara a favor da «questão duriense» e da viticultura em geral, a assembleia irrompeu, de pé, em aclamações. Perante a obra feita, o sentimento regional para com Antão de Carvalho era de gratidão. Em consequência, foi deliberado, por unanimidade, homenageá-lo e, em simultâneo, a Nuno Simões, "ilustre jornalista que fez da questão do Douro uma questão nacional"16 e Veiga Simões17. Para esse efeito, foi nomeada uma comissão executiva, integrada por Jerónimo de Matos Ribeiro dos Santos (presidente)18, José Lopes Pereira da Costa (tesoureiro, secretário da Comissão de Viticultura Duriense) e João da Silva Bonifácio (secretário)19. Estas individualidades distribuíram uma circular por todas as Câmaras e outros organismos da Região Duriense, em que informavam que haviam decidido estender a homenagem a António da Fonseca, delegado português nas Conferências de Bordéus20 e Paris, por ter conseguido fazer vingar a doutrina de protecção às marcas regionais «Porto» e «Madeira». As inscrições para o banquete teriam de ser feitas junto dos presidentes de Câmara e vogais da Comissão de Viticultura Duriense e tinham um custo de 30 escudos (destinados a música, fogo e ornamentações). Além de ofertas pecuniárias, aceitavam-se também dádivas em vinhos generosos destinados ao jantar de homenagem.

O banquete realizou-se no dia 14 de Agosto de 1922, coincidindo com a abertura da Parada Agrícola, em Peso da Régua. A Mesa de honra, presidida por Jerónimo de Matos, era formada por Lobo Alves21, António Fonseca, Mota Marques, Torcato de Magalhães22, João Bonifácio, Serafim de Barros23 e José Lopes Pereira da Costa, a que se juntavam mais de uma centena de convivas. Jerónimo de Matos deu conta da inúmera correspondência recebida - cartas e telegramas de colectividades e pessoas "interessadas no progresso regional"24, representações das Câmaras Municipais e da Comissão de Viticultura Duriense. Pôs em relevo a acção de Antão de Carvalho no campo político em favor dos interesses regionais considerando que, no exercício do cargo ministerial, se mostrara como uma das raras personalidades que passara pelo Governo afirmando-se pelo poder e através da sua obra, que se impunha ao respeito de todos, razão pela qual lhe eram merecidas todas as homenagens. Em resposta, Antão de Carvalho, colocando a questão regional acima da política, evocou o legado de marquês de Pombal, João Franco25 e Afonso Costa26, a quem considerava como defensores do Alto Douro. Inseria, desse modo, o seu próprio legado num movimento de defesa regional mais vasto, em que incluía ainda a acção de Nuno Simões, Veiga Simões, António Fonseca, Torcato Luís de Magalhães e Serafim de Barros pelo esforço votado à causa regional. Apontando para a existência de uma ampla rede de influências e sociabilidades políticas, aceitava a homenagem que lhe faziam mas dirigia "todos os aplausos àqueles amigos do Douro que estão ao lado dos viticultores da região"27.

O reconhecimento a Antão de Carvalho vinha também de outras regiões do país e de diversas instituições. O jornal A Pátria noticiava, em Dezembro de 192128, o agradecimento dos sindicatos agrícolas do Cadaval e de Portalegre a propósito dos decretos de fiscalização de venda de vinhos e de proibição da baga de sabugueiro. Ainda segundo o mesmo periódico, também a Liga Agrária do Norte se manifestava em idêntico sentido a respeito do decreto sobre a baga de sabugueiro, ao mesmo tempo que dava conhecimento de fraudes praticadas no Brasil pelos fabricantes de vinhos artificiais. Por sua vez, os funcionários públicos do Montijo declaravam o seu contentamento pela criação do Comissariado dos Abastecimentos e pediam auxílio e protecção para as cooperativas.

As declarações de Tiago Sales, presidente da Federação dos Sindicatos Agrícolas do Centro de Portugal, eram igualmente abonatórias da actividade ministerial de Antão de Carvalho, particularmente a respeito do decreto que regulava o desdobramento de vinhos de pasto. Segundo esta personalidade, os seus efeitos positivos haviam-se feito sentir de imediato, com melhoria da qualidade dos vinhos expostos à venda. Já em 1923, no discurso de abertura do Congresso de Viseu, Tiago Sales elogiaria novamente a acção de Antão de Carvalho enquanto Ministro da Agricultura, pondo em relevo a proibição da exportação da baga de sabugueiro29. O apoio de Tiago Sales revestia-se de uma enorme importância, assumindo-se como contraponto ao debate sectorial e inter-regional a que se assistiria logo de seguida.

 

A anulação dos diplomas de protecção ao Alto Douro

Na referida reunião de 28 de Dezembro de 1921, Antão de Carvalho manifestou receio de que as vantagens conquistadas para a viticultura duriense viessem a ser revogadas em consequência da pressão de lobbies. Esses receios viriam a concretizar-se com a notícia, veiculada oficiosamente, de que o decreto n° 7852 ia ser alterado na parte respeitante aos vinhos do Douro, por indicação do Conselho Superior de Agricultura e no âmbito do projectado decreto de fiscalização dos vinhos comuns.

Em ofício da Comissão de Viticultura da Região Duriense enviado a diversos organismos do Alto Douro, Antão de Carvalho explicava o que estava em causa "para que o Douro compreenda o que representa a sua perda"30. O decreto n° 7852 proibia a exposição e venda, em todo o país, de vinhos de consumo com menos de 11°, abrindo excepção aos vinhos durienses, que podiam ser vendidos com qualquer graduação, conferindo-lhes posição privilegiada no mercado interno. Como afirmava Antão de Carvalho, o decreto era guiado por um princípio de justiça procurando-se colmatar as deficiências da legislação, em particular a proibição de os vinhos durienses serem destilados, prevista na legislação desde 1907. Ou seja, a excepção constante do decreto n° 7852 era consequência da excepção veiculada no decreto de 10 de Maio de 1907, mantida em toda a legislação sequente. A Carla Sequeira. "A Denominação de Origem <<Porto>> (Alto Douro, Portugal): a acção do ministro Antão de Carvalho" / "La Denominación de Origen <<Oporto>> (Alto Douro, Portugal): la acción del ministro Antão de Carvalho" / "The <<Porto>> Apellation of Origin (Alto Douro, Portugal) : the role of the Minister Antão de Carvalho". RIVAR Vol. 2, N° 5, ISSN 0719-4994, IDEA-USACH, Santiago de Chile, mayo 2015, pp.83-98 questão que se colocava com a alteração da lei era grave: se não podiam ser destilados, o que se havia de fazer aos vinhos durienses com menos de 11°, se também não pudessem ser vendidos? Ficariam milhares de pipas sem destino. Perante isto, Antão de Carvalho incitava ao protesto regional, nos mesmos moldes a que se assistira no âmbito do tratado luso-britânico de 1914. Da sua parte, na qualidade de presidente da Comissão de Viticultura Duriense, reclamara através de telegrama ao presidente do Ministério e ministros da Agricultura e do Comércio, solicitando que não fosse aprovada a alteração à lei. O Governo responderia com uma nota oficiosa fornecida à imprensa, que seria alvo de novo protesto por parte de Antão de Carvalho. Em sua opinião, o Governo manifestava ignorância do assunto, não referindo sequer os argumentos que haviam sido aduzidos. Em novo ofício às municipalidades durienses, Antão de Carvalho renovava as razões que haviam justificado o protesto, embora considerasse que se estava perante uma causa perdida e que se verificava já uma quebra na procura dos vinhos de consumo, que se vinha acentuando31.

Em entrevista concedida ao jornal A Pátria, em finais de Janeiro de 1922, Antão explicava que, ao tomar posse do ministério, uma das grandes questões com que se deparara era a que fora criada pelo já referido decreto n° 7746, que suscitara muitas reclamações das associações agrícolas, viticultura do Douro e alguns comerciantes. Antão de Carvalho concordava com o alvitre manifestado pelas associações agrícolas de que o princípio que estabelecia uma graduação para os vinhos a consumir em Lisboa e Porto deveria alargar-se a todo o país. Mas concordava também com a reivindicação do Alto Douro de não querer incluir os seus vinhos virgens na medida geral, por isso significar o encerramento do mercado interno. Enquanto Ministro da Agricultura, convocou o Conselho Superior de Agricultura que apontou, como solução, baixar a graduação para 10°, de modo a salvaguardar os interesses do Douro. Ouviu ainda representantes das associações agrícolas, que propuseram a manutenção da graduação de 11°, acompanhada de uma excepção a favor dos vinhos virgens do Douro. Assim, o decreto tinha a sanção da viticultura nacional. Logo que foi publicado, surgiram reclamações por parte dos comerciantes por junto de Lisboa e Porto, mas Antão de Carvalho não lhes deu importância, considerando-as insubsistentes e injustas. Agora, pretendia-se a sua alteração apesar de, em reunião do Conselho Superior de Agricultura, os representantes das Federações dos Sindicatos do Norte e Centro de Portugal terem defendido a excepção consignada. Para Antão de Carvalho, a anunciada alteração ao decreto apontava para a existência de interesses ocultos, o que o levava a afirmar preferir a revogação do seu decreto do que vê-lo alterado com "injustiça que prejudica, fere e revolta"32.

O diploma legal viria, efectivamente, a ser alterado pelo decreto n° 8079, de 27 de Março de 1922 (Diário do Governo 1a Série, n° 61, de 27 Março 1922: 356-357). Este facto significava o triunfo do lobby dos produtores de vinhos de pasto do Centro e Sul do país, uma vez que passava a ser permitida a venda dos vinhos verdes e de Colares, os de pasto de marcas registadas engarrafados e, na cidade do Porto, dos vinhos de pasto do Douro com graduação superior a 10°; determinava ainda que as Câmaras Municipais, por indicação do sindicato agrícola do respectivo concelho, deveriam indicar até 31 de Dezembro a graduação alcoólica mínima dos vinhos de pasto a serem vendidos no ano seguinte.

Também sofreria alterações o decreto relativo à baga de sabugueiro (decreto n° 7851), em consequência das reclamações apresentadas por produtores e exportadores, que alegavam que a proibição inesperada da sua venda ou exportação lhes era prejudicial. Pelo decreto n° 8080, de 28 de Março de 1922, eram suspensos os artigos 1° e 2° do decreto n° 7851, permitindo-se até 30 de Junho de 1922 o trânsito e a exportação da baga da última colheita. De imediato, Antão de Carvalho enviou um telegrama ao deputado Nuno Simões, pedindo-lhe que se fizesse porta-voz do protesto regional contra o novo decreto. Relembrava que o decreto n° 7851, que concedia um período transitório para escoamento da baga, respondera a várias reclamações da viticultura nacional, consubstanciadas na tese de Lobo Alves, votada por unanimidade no Congresso Agrícola de Coimbra33. Para Antão de Carvalho, também nesta matéria o Governo se deixara guiar por pressões de grupos de interesse, na esteira do já tradicional debate sectorial e inter-regional a propósito da «questão duriense». As reclamações contra o decreto haviam começado quando o novo regime de venda de vinhos comuns produzira os seus efeitos, aliados à grande exportação para França, conduzindo a um grande escoamento das massas vínicas. A partir desse momento, passou a assistir-se aos jogos de influências junto do Ministro da Agricultura. O resultado estava à vista: autorização da baga de sabugueiro e, consequentemente, a falsificação dos vinhos de pasto. Antão de Carvalho lamentava que, à semelhança de outras conjunturas, o Governo se deixasse manipular por grupos de interesse opositores ao Alto Douro, acabando por anular "as obras úteis e bem-intencionadas dos seus antecessores"34.

 

Conclusões

A defesa da denominação de origem «Porto» ficou marcada, ao longo do primeiro terço do século XX, por diversas vicissitudes e pelo conflito de interesses entre os diversos agentes do sector vitícola nacional, orientados para a apologia do proteccionismo de classe.

A acção das elites durienses, marcada por um forte regionalismo, caracterizou-se pela organização de um movimento informal, sustentado nas Comissões ou Juntas de Defesa do Douro, a que se associavam as Câmaras Municipais, os sindicatos agrícolas e, após 1907, a Comissão de Viticultura da Região do Douro. Estava-se, assim, em presença de uma rede de influências, construída e liderada pelos notáveis locais, com forte poder de mobilização e apoiada, por vezes, na representação parlamentar.

Com o mesmo objectivo, os notáveis regionais souberam aproveitar os cargos políticos e administrativos de que eram titulares. Foi o caso de Antão de Carvalho que, usufruindo da rede de sociabilidades políticas que foi construindo, e que se estendia do Alto Douro até Lisboa, alcançou o cargo de Ministro da Agricultura, orientando a sua acção no sentido de concretizar as reivindicações regionais. Dessa forma, procurava contornar o debate regional e sectorial em torno da questão vitícola em que, maioritariamente, eram dominantes os grupos de interesse opositores do Alto Douro. Contudo, embora a Região Duriense tenha conseguido constituir-se em «grupo de pressão», continuava a ser minoritária face aos restantes lobbies que cercavam o Governo o que ajuda a explicar que, após o fim do ministério Antão de Carvalho, alguns dos benefícios alcançados tenham sido rapidamente derrogados.

 

Estátua de Antão de Carvalho, junto à Casa do Douro, em Peso da Régua - Alto Douro, Portugal (autoria do escultor Eduardo Tavares). Fonte: Foto Egídio Santos

 

Notas

1 Organismo criado em 1907 com funções de fiscalização e regulação do sector do vinho do Porto.

2 Movimento revolucionário ocorrido em Lisboa em 19 de Outubro de 1921, que depôs o Governo constituído em Agosto desse ano. Na sequência dos acontecimentos, o presidente do ministério e outras importantes figuras políticas, algumas das quais ligadas à implantação da República em Portugal, seriam assassinadas naquela que ficou conhecida como «Noite Sangrenta» (Wheeler, 2010: 245-247).

3 Arquivo da Casa do Douro — Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 63.

4 "O pão nosso... O sr. Ministro da agricultura diz a um redactor de "A Pátria" o que pensa de momento sobre o seu programa ministerial". A Pátria. (Lisboa, 26 Outubro 1921): 1.

5 A expressão «Governo dos interesses», aqui utilizada a partir da obra de Nuno Madureira, aponta para a tentativa de o Alto Douro, aproveitando o cargo ministerial de Antão de Carvalho, se constituir em lobby junto do poder central. Procurava-se, dessa forma, contornar a influência de outros grupos de interesse do sector vitivinícola e influenciar as decisões governamentais no sentido de satisfazer as reivindicações regionais.

6 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 65.

7 Segundo a imprensa duriense, a Comissão apresentou, no prazo estabelecido, o novo regulamento ao Ministro da Agricultura, que já não era Antão de Carvalho. Cf. "A cultura do tabaco no Douro". A Defesa do Douro (Peso da Régua, 6 Dezembro 1925): 1.

8 Criada pelo regime republicano, a Escola Agrícola Móvel constituía-se num "organismo de assistência técnica junto do lavrador" com o objectivo de fomentar métodos e boas práticas agrícolas. No caso da Região Duriense, seria dado um particular enfoque à viticultura e às práticas enológicas, através de uma vertente prática de interacção com os proprietários e viticultores no sentido de melhorar as técnicas de cultivo da vinha e produção vitícola. Cf. A Escola Agrícola Móvel da Região Duriense. O que é e para que serve (1927).

9 Diligenciou também no sentido de conseguir a abertura de créditos para fornecimento de sementes aos agricultores.

10 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 64v.

11 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 66-66v.

12 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 67.

13 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 67v.

14 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 66v.

15 Arquivo da Casa do Douro - Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense (1917-1924), fl. 63.

16 "O banquete da Régua". A Pátria (Lisboa, 15 Agosto 1922): 1. Nuno Simões foi Governador Civil de Vila Real entre 1915 e 1917 e deputado por Vila Real em várias legislaturas. Estreitamente ligado aos movimentos regionais, era ainda o director do jornal A Pátria que, embora fosse publicado em Lisboa, se veio a constituir como órgão defensor da Região do Douro.

17 Ministro dos Negócios estrangeiros nos dois Governos de que fez parte Antão de Carvalho, tivera uma importância fundamental ao acautelar os interesses durienses no convénio entre Portugal e a Alemanha; celebrado a 6 de Dezembro de 1921, a Alemanha comprometia-se a importar, durante um ano, 50.000 hectolitros de vinho generoso português, 40.000 dos quais seriam de vinho do Porto.

18 Jerónimo de Matos pertencia à elite política próxima de Antão de Carvalho. Exerceu os cargos de vereador, vice-presidente e presidente da Câmara Municipal de Peso da Régua. Foi eleito senador pelo círculo de Vila Real em 1915.

19 João Bonifácio integrava também a elite política adstrita a Antão de Carvalho. Exerceu o cargo de administrador do concelho de Peso da Régua e vereador da Câmara Municipal de Peso da Régua.

20 Ver, a este respeito, Sequeira, 2011: 320-321.

21 Senador pelo círculo de Vila Real em 1921, onde desempenhou uma importante acção em defesa dos interesses do Douro.

22 Antigo presidente da Câmara Municipal de Alijó e Senador pelo círculo de Vila Real em 1919.

23 Deputado pelo círculo de Chaves (distrito de Vila Real) em 1921 e 1922, eleito pelo Partido Democrático.

24 "O banquete da Régua". A Pátria (Lisboa, 15 Agosto 1922): 1.

25 Promulgou o decreto de 10 de Maio de 1907, que instituía o regresso a um regime proteccionista para a Região Demarcada do Douro.

26 Esta posição de Antão de Carvalho relativamente a Afonso Costa mais não era do que o reflexo da fidelidade política que os unia. Afonso Costa, líder nacional do Partido Democrático, ao qual pertencia Antão de Carvalho, era seu amigo pessoal desde os tempos em que haviam sido colegas na Universidade de Coimbra. Em 1907, defendeu no Parlamento, a necessidade de se proteger legalmente a marca «Porto». Constituía, pois, mais um elo da rede de sociabilidades políticas em que se movia Antão de Carvalho.

27 "O banquete da Régua". A Pátria (Lisboa, 15 Agosto 1922): 1.

28"Informação de hoje". A Pátria (Lisboa, 6 Dezembro 1921): 2.

29 Cf. "Congresso Agrícola de Viseu". A Pátria (Lisboa, 22 Junho 1923): 3.

30 Arquivo Municipal de Alijó — Correspondência recebida, maço 1: circular da Comissão de Viticultura da Região Duriense, 19 de Janeiro de 1922.

31 Arquivo Municipal de Alijó — Correspondência recebida, maço 1: circular da Comissão de Viticultura da Região Duriense, 27 de Janeiro de 1922.

32 "Os vinhos de pasto". A Pátria (Lisboa, 3 Fevereiro 1922): 1.

33 Ver, a este respeito, Sequeira, 2011: 307-308.

34 "Ainda a baga de sabugueiro" A Pátria (Lisboa, 5 Abril 1922): 1.

 

Bibliografia

- A Escola Agrícola Móvel da Região Duriense. O que é e para que serve. Régua, Escola Agrícola Móvel da Região Duriense, 1927.

- Guimarãis, Alberto Laplaine et al. Os Presidentes e os Governos da República no Século XX. Lisboa, Caixa Geral de Depósitos/ Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000.

- Madureira, Nuno Luís. A economia dos interesses: Portugal entre as guerras. Lisboa, Livros Horizonte, 2002.

- Marques, A. H. de Oliveira. História da Primeira República Portuguesa. As estruturas de base. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1978.

- Sequeira, Carla. O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo: a «questão duriense» na economia nacional. Porto, CITCEM/ Edições Afrontamento, 2011.

- Ventura, António, Os Constituintes de 1911 e a Maçonaria. Lisboa Temas & Debates/ Círculo de Leitores, 2011.

- Wheeler, Douglas. História política de Portugal, 1910-1926. 2.a edição. Lisboa, Publicações Europa-América, 2010.

 


*Investigação desenvolvida no âmbito do projecto de pós-doutoramento «Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro», inserido no projecto do CITCEM subordinado ao tema «O Douro Vinhateiro na Primeira República: Defesa da Denominação de Origem e Construção de uma Identidade Regional». Trabalho financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projecto PEst-OE/HIS/UI4059/2014 e Bolsa de Pós-Doutoramento, co-financiada pelo Fundo Social Europeu através do Programa Operacional Potencial Humano - POPH/ QREN.

Recibido: 22-09-2014 Aceptado: 10-01-2015

 


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