Gaspar Martins Pereira y Amândio Morais Barros.
“O vinho do Porto e a Região do Douro na Época Moderna” / “Port Wine and the Douro Region in the Early Modern Period” / “El vino de Porto y la Región del Douro en la Época Moderna”.
RIVAR Vol. 3, Nº 8, ISSN 0719-4994, IDEA-USACH, Santiago de Chile, mayo 2016, pp. 110-144


 

O vinho do Porto e a Região do Douro na Época Moderna

Port wine and the Douro region in the Early Modern Period

El vino de Porto y la Región del Douro en la Época Moderna

 

Gaspar Martins Pereira* Amândio Morais Barros**

*Profesor catedrático del Departamento de História y Estudios Políticos e Internacionales de la Facultad de Letras de la Universidade do Porto. Investigador de CITCEM -Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória. Correo electrónico: gasparmp@sapo.pt

**Profesor de la Escuela Superior de Educación del Instituto Politécnico de Porto. Investigador de CITCEM -Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória. Correo electrónico: amandiobarros@hotmail.com

 


Resumo

Neste trabalho analisamos a dinâmica do vinho do Porto na Época Moderna, tentando fundamentar a ideia de que a criação deste vinho é o resultado de um longo e persistente processo de implantação da vinha num território em que os homens aproveitaram as condições naturais favoráveis para a produção de um vinho único. Na primeira secção, referimo-nos à relação entre o vinho e sua implantação no território, procurando demonstrar que, embora o vinho do Porto só se identifique com a região do Douro a partir do século XVIII, a fase exploratória terá começado muito antes, durante a Idade Média. No ponto seguinte, estudamos as raízes históricas do desenvolvimento da viticultura na região, partindo de textos de cronistas medievais e modernos, bem como de documentos de arquivo, que provam que algumas partes do território, como a região em redor de Lamego, estavam já profundamente envolvidas na comercialização de vinhos de qualidade (de "vinhos velhos e aromáticos") a nível internacional. A terceira secção aborda a relação entre a terra e a produção do vinho, tema que remete para o papel da Companhia monopolista fundada por Pombal em 1756 na protecção da qualidade do vinho do Porto por um inovador processo de demarcação que fez do Douro a primeira região vinícola demarcada e regulamentada do mundo. Na quarta parte, estudamos a emergência histórica do vinho do Porto/Douro e o papel desempenhado pelas elites locais na criação de uma marca regional; no caso do vinho do Porto, torna-se evidente que a produção de vinho (e o reconhecimento da marca Porto) foi o resultado de uma estratégia económica desenhada desde cedo, a partir da Idade Média, pelos conventos cistercienses da região e seguida pelas elites mercantis do Porto que dominaram a distribuição desses vinhos. Deste ponto de vista, é interessante analisar o processo pelo qual alguns propietários de "granjas de vinho" tentaram (e em muitos casos conseguiram) alcançar o estatuto de "vizinhos do Porto", obtendo privilégios comerciais. Na seguinte e última secção, procuramos analisar os exportadores, comerciantes, nobres (e nobres-comerciantes) e mosteiros, a aposta que fizeram nas exportações de vinho para Inglaterra, e, mais tarde, os accionistas da Companhia, a elite do vinho que transformou os negócios locais numa ampla e significativa empresa.

Palavras-chave: vinho do Porto, Douro, história económica e social.


Resumen

En este trabajo se analiza la dinámica del vino de Oporto en la Edad Moderna. Se explica que la creación del vino de Oporto es resultado de un largo y persistente proceso de implantación de la vid en un territorio donde los hombres se aprovecharon de las condiciones naturales favorables para la fabricación de un vino único. En la primera sección, el artículo habla de la relación entre el vino y su implantación en el territorio; se demuestra que el vino de Oporto solamente se puede identificar con la región del Duero en el siglo XVIII, aunque la fase exploratoria empezó en un tiempo tan temprano como la Edad Media. A continuación se estudian los orígenes históricos del crecimiento del vino en la región mediante la presentación de textos de los cronistas medievales y modernos, además de documentos de archivo que prueban que partes del territorio, como la región alrededor de Lamego, se encontraban ya profundamente involucradas en la comercialización de vinos de calidad (de "vinos viejos y aromáticos") a nivel internacional. La tercera sección desarrolla la conexión entre la tierra y la producción de vino, tema que remite para el papel de la Compañía Monopolística fundada por Pombal en 1756 en la protección de la calidad del vino de Oporto por un innovador proceso de demarcación que permitió que la región del Duero fuera la primera región vinícola demarcada y reglamentada en el mundo. En la cuarta parte se estudia la aparición histórica del Duero / vino de Oporto en relación a la actuación de las élites locales en la creación de una marca; en el caso del Vino de Oporto queda claro que la producción de vino (y el reconocimiento de la marca Porto/Port Wine) fue el resultado de una estrategia económica diseñada a principios de la Edad Media por los conventos cistercienses en la región, que fue seguido por las elites comerciales de Oporto que dominaron la distribución de vinos. Desde este punto de vista, es interesante analizar el proceso por el que algunos de los propietarios de "granjas de vino" intentaron (y en muchos casos lograron) conseguir el estatuto de "vecinos de Oporto", logrando privilegios comerciales. En la siguiente y última sección se desarrolla el análisis de los exportadores, comerciantes, nobleza (y nobles-comerciantes) y monasterios, la apuesta que depositaron en las exportaciones de vino hacia Inglaterra y, más tarde, la aparición de accionistas de la Compañía, la élite del vino que logró transformar los negocios locales en una amplia y significativa empresa.

Palabras clave: vino de Oporto, Duero, historia económica y social.


Abstract

This paper will focus on the analysis of the Port wine dynamics in the Early Modern Period. One of the major objectives we'll try to achieve is to present evidence that the birth of Port wine was the result of a long and persistent process of implantation in the territory in which men took advantage of favourable natural conditions of the ground to manufacture a wine which is unique. The first section will deal with the relation between wine and its implantation in the territory in which we will prove that Port wine can only be identified with the Douro region in the 18th century although the exploratory phase begun in the Middle Ages. Next, we will focus on the historical roots of wine-growth in the region by presenting evidence from chroniclers and archive documents that some parts of the region (namely Lamego) had already been involved in the commercialization of wines of quality ("old" and "aromatic" wines) at an international level. The third section deals with the role attributed to the soil on the wine production which is a subject that leads us towards the role of the Company (the Monopolistic Company founded by Pombal in 1756) in the protection of the Port wine quality by an innovative process of demarcation which made the Douro region the first formally demarcated wine region in the world. The fourth chapter will deal with the historical emergence of the Douro/Port wine and the role played by the local elites in the creation of a brand; from the Port wine case, it is clear that the wine production (and the recognition of the brand Port) was the result of an economic strategy designed early in the Middle Ages by the Cistercian convents

in the region, which was followed by the merchant elites of Porto which dominated the wine distribution. From this point of view, it is interesting to analyse the process by which some of the proprietors of "wine farms" intended (and in many cases achieved) to obtain the statute of "Porto neighbours" which granted them with trade and commercial privileges. In the following and final section we will meet the exporters, merchants, nobility (and nobility-merchants) and convents, the bet they place in the wine exportations to England and, later, the appearance of the Company's shareholders, the novel Port wine elite that transformed business and the city into an huge and significant enterprise.

Keywords: Port wine, Douro Region, economic and social history.


 

Introdução

O presente estudo analisa a dinâmica sócio-territorial dos vinhos generosos do Douro na Época Moderna, quando se conjugaram as condições para a emergência de um tipo de vinho de características singulares e para o seu reconhecimento pelos mercados sob a denominação de "vinho do Porto". Procuraremos demonstrar que o vinho do Porto, tal como hoje o conhecemos, resultou de um longo, persistente e complexo processo enraizado no território de origem, em articulação com mercados mais ou menos distantes. Nesse processo, o homem, desde muito cedo, reconheceu e explorou as vantagens que o solo lhe proporcionava, disponibilizando-lhe condições favoráveis -vinhedo de encosta, de fraco rendimento e de difícil labor mas beneficiando de excepcional clima e da aptidão produtiva do terreno- para a obtenção de vinhos de elevada qualidade, com excelente aroma e sabor e susceptíveis de longa conservação.

Ao longo deste artigo, tentaremos perceber:

i) como se estabeleceu a relação entre a produção de vinhos generosos do Douro e o reconhecimento da especificidade do seu território de origem, bem como as raízes históricas dessa justaposição;

ii) as condições históricas da valorização dos vinhos durienses e o seu significado;

iii) a questão do solo e a importância que lhe era atribuída na produção de vinhos de características singulares;

iv) o papel das elites regionais na criação e consolidação da marca "Porto";

v) em que medida o vinho do Porto se tornou um vector de prestígio social e como foi usado pelas elites regionais para a sua auto-promoção, assim como os esforços realizados por essas mesmas elites no sentido de manterem o controlo da produção e das condições de comercialização do produto.

 

O Douro e o vinho do Porto: raízes históricas de uma relação difícil

Pelo menos desde finais da Idade Média, os melhores vinhos do Douro eram já muito valorizados, obtendo preços muito superiores aos vinhos correntes. Um autor da época, Rui Fernandes, feitor do Rei na cidade de Lamego, legou-nos uma panorâmica da produção dessa zona do Douro. Escrita em 1531 e 1532, num período de transição dos tempos medievais para os modernos, a descrição de Rui Fernandes abunda nos pormenores relativos à bondade e à quantidade das produções. Mostra-nos um vinhedo diversificado, mas que na sua maior parte se situa nas encostas do Douro, produzindo vinhos aromáticos e com capacidade de envelhecimento, servidos nas mesas da Corte e das casas senhoriais. Fernandes fornece dados sobre uma produção abundante para os níveis da época (cerca de 15 mil pipas anuais para esta pequena parte do Douro) e sobre a sua capacidade de exportação, quer para os mercados internos (entre Douro e Minho, Aveiro e Lisboa) quer para os externos (para a Corte e casas senhoriais de Castela) (Fernandes, [1531-1532] 2001: 34-42).

Por essa altura, os melhores vinhos do Douro, apesar de já reconhecidos nos mercados regionais e inter-regionais (interiores e exteriores) como "maravilhosos vinhos de pé" e "cheirantes", estavam ainda longe de alcançar a vocação exportadora que lhes colaria a designação de "vinhos de Porto", mas já eram, indubitavelmente, vinhos de vocação mercantil, surgindo, em vários documentos do século XVI, com a designação de "vinhos de carregação" (Barros, [1548] 1919), o que significava na terminologia regional que eram vinhos que se destinavam a ser embarcados e a seguir pelo rio para o mercado do Porto.

As designações mais correntes que nos surgem na documentação medieval e do início da Época Moderna -vinhos de "Riba Douro", de "Cima do Douro", de "Lamego", etc.- não deixam dúvidas quanto ao facto da geografia do vinhedo, naqueles tempos, apenas escassamente coincidir com os limites do "país vinhateiro" desenhado pelas demarcações do século XVIII. Por outro lado, o povoamento da região, enquadrado por estruturas senhoriais (nobres e monásticas) e concelhias (rurais e urbanas) herdadas da Idade Média, exercia inegável influência sobre o mapa produtivo do território, impondo extensos espaços "vazios"1 que só seriam ocupados e explorados em tempos posteriores.2

A partir das Vereações quatrocentistas do Porto com referências à entrada de vinhos na cidade, chegamos à seguinte representação cartográfica.

 

Para uma geografía dos vinhos na Idade Média. Mosteiros e regiões produtoras

Fonte: AHMP. Vereações do século XV

 

Como se pode observar, os maiores centros fornecedores de vinhos à cidade coincidem com os núcleos mais povoados junto dos cursos inferiores dos rios Douro e Tâmega, grosso modo, de Entre-os-Rios a Amarante, realidade que se explica pela concentração de gentes e de propriedades com tradição de cultivo de vinhos, nos vales desenhados pelo grande rio e seus afluentes, bem como pela facilidade de transporte (é o Douro na sua fase de melhor navegação) em barcas, as quais asseguravam um tráfego intenso que tinha a cidade como principal referente. Na área da actual região demarcada, sobressaíam os vinhos produzidos em Santa Marta de Penaguião e em Lamego, precisamente a mancha de maior intensidade de produção e a que virá a ser mais beneficiada nas demarcações da região vinhateira de meados do século XVIII. Da zona de Lamego deve destacar-se a menção a remessas de vinhos do vale do Varosa, expedidos desde os domínios dos mosteiros cistercienses de Salzedas e São João de Tarouca, cujo investimento na vitivinicultura, desde o século XII, terá contribuído decisivamente para a especialização regional.3

Este panorama geral manter-se-á por muito tempo. Num outro momento, situado em 1585, ano bem documentado relativamente a entradas de vinhos no Porto, tendo em vista o abastecimento de armadas organizadas naquela ocasião, a naturalidade dos barqueiros encarregados do transporte deixa transparecer essa continuidade.4

 

Número de pipas transportadas entre janeiro e fevereiro de 1585 para o Porto por lugar de procedência dos barqueiros

Fonte: AHMP. Vereações, liv. 27

A expansão da área do vinhedo duriense, a partir do século XVII, coincidiu com o crescimento rápido do mercado, em especial britânico. A vocação exportadora dos vinhos generosos do Douro, a partir do Porto, já esboçada na centúria de quinhentos com a procura marítima e ultramarina, viria a afirmar-se, desde finais do século XVII, com destino privilegiado e em quantidades crescentes para o mercado britânico. Em poucas décadas, o vinho do Porto tornar-se-ia "o vinho dos ingleses",5 o que teve uma dupla consequência: o desenvolvimento rápido da produção regional e o fabrico de vinhos mais aguardentados, doces, aromáticos e retintos, correspondentes ao gosto britânico. A região do Alto Douro, onde se podia obter vinhos com essas características, reforçava, simultaneamente, a sua vocação vinhateira. E as denominações "vinhos de Cima Douro", "vinhos do Porto" ou "vinhos de feitoria" tornavam-se sinónimas.

Anunciava-se, então, o panorama com que o primeiro-ministro do Rei D. José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, se iria confrontar em meados do século XVIII, numa altura em que o comércio do vinho do Porto foi atingido por uma grave crise. Convém dizer que, nessa altura, o vinho do Porto era, de longe, a principal exportação portuguesa, excluídos os produtos coloniais. Esse estatuto explicava por que motivo o vinho era entendido pelo Estado absolutista como um produto estratégico que importava defender, na perspectiva mercantilista de Pombal. A solução adoptada foi a criação de uma Companhia -a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro-, por alvará régio de 10 de Setembro de 1756, com poderes majestáticos para proceder à demarcação da região produtora e controlar a produção, transporte e comércio do vinho. Com a rigorosa e complexa legislação pombalina, o "vinho do Porto" ou "de feitoria", com preços fixados por lei, passava a ser uma produção "exclusiva" da zona demarcada do Alto Douro.

 

Fonte: Arquivo da Real Companhia Velha, "Livros de Arrolamento de Vinhos de Embarque", 1770. Carta Administrativa Oficina de Portugal, escala 1:25.000, IGP, 2004.

 

Condições históricas da valorização dos vinhos generosos durienses

A valorização dos vinhos generosos do Douro, ao longo da Época Moderna, decorreu, essencialmente, da sua vocação mercantil. O reconhecimento precoce da sua qualidade pelos mercados -portuense, ibérico, ultramarino e britânico, por esta ordem- determinou não só o investimento contínuo na produção regional como o aperfeiçoamento das técnicas vitivinícolas e a adaptação dos vinhos aos mercados consumidores.

Importa ter em conta que, no início da Época Moderna, os vinhos do Douro, mesmo reunidos aos de outras regiões portuguesas, respondiam basicamente às necessidades de consumo internas e à logística das armadas. A sua exportação, embora existisse -para além de Castela, há notícias, desde a Idade Média, de remessas de vinhos em navios portugueses para a Inglaterra e a Flandres-, não era significativa. Os vinhos integravam, geralmente, um conjunto de mercadorias (sal, couros, pescado e, à medida que a Época Moderna avançava, pastel, corantes e açúcar dos domínios atlânticos) características da carga das embarcações portuguesas que demandavam os portos europeus nos séculos XV e XVI. Deve também dizer-se que esses vinhos de forma alguma conseguiam competir, nessa altura, com os vinhos franceses (Pereira e Barros, 2013: 198-199).

Será o grande impulso das armadas -enviadas anualmente para a Índia, Brasil e restante espaço atlântico- a fazer alastrar a mancha vitícola, processo que decorre entre os séculos XVI e XVII. Depois, ao longo do século XVII, a pressão da procura holandesa (em fase de construção de um império ultramarino necessitado de vinhos e no contexto de rivalidade mantida com a França, tradicional fornecedora, em particular com as políticas proteccionistas de Colbert) nas principais regiões vitícolas europeias virá alterar, substancialmente, o comércio internacional de vinhos. Dever-se-á aos holandeses e às inovações que introduziram na produção de vinhos fortificados, calibrados com aguardentes e aptos a viajar a longas distâncias, a "revolução vinícola" que marcou a história de muitos vinhos europeus no século XVII (Enjalbert, 1953: 322). No caso dos vinhos finos do Douro, entre o início do século XVII e o início do século XVIII, essa "revolução" traduziu-se em alterações tecnológicas decisivas: primeiro, nos armazéns dos negociantes do Porto e de Gaia, com a adição de aguardente aos vinhos já feitos e que se destinavam à exportação, obtendo vinhos mais fortes e alcoolizados; depois, já no início do século XVIII, com a adição de aguardente ao mosto, nas adegas dos produtores do Douro, para travar a fermentação e conservar a doçura natural das uvas (Pereira e Barros, 2013: 202-206). Estas alterações -no fundo, esta adequação aos gostos dos mercados- foram estimuladas pela procura crescente dos vinhos generosos do Douro pelo mercado britânico, entre finais da década de setenta do século XVII e os anos vinte do século XVIII, numa conjuntura comercial particularmente favorável para os vinhos ibéricos, criada pelas rivalidades e guerras entre os impérios marítimos do norte.

 

A terra, onde tudo começa

Pode dizer-se que, desde muito cedo, a questão do solo e das condições naturais que favoreciam a produção de vinhos de características singulares suscitava a maior atenção por parte dos viticultores durienses. Certamente, de forma empírica, a viticultura tradicional do Douro seleccionava os terrenos pobres de xisto, em encostas por vezes bastante íngremes, com melhor exposição solar para a boa maturação das uvas, fugindo tanto das zonas mais húmidas, deixadas para hortas e outras culturas, como das zonas de maior altitude, abandonadas à floresta.

É evidente que, numa região pobre, a geografia do vinhedo esbarrava, frequentemente, com as necessidades de sobrevivência das populações locais, numa economia de autoconsumo que não podia dispensar as "terras de pão" e a criação de gado, pelo menos no caso dos pequenos viticultores que eram (e são ainda hoje) a esmagadora maioria (sempre acima dos 90%). Essa relação entre a agricultura de subsistência e a viticultura de vocação mercantil duriense determinou, de resto, a adopção de formas de organização dos terrenos de cultivo e de técnicas vitícolas, os quais deixaram vestígios evidentes na paisagem duriense. Em algumas zonas em que se tornava possível combinar a viticultura com o cultivo de cereais, como revela o autor de uma Memória de final do século XVIII, a vinha era constituída apenas pelas videiras plantadas "em pilheiros" na parede do socalco, deixando-se a terra do "geio" livre para o cultivo de cereais (Fonseca, 1791: 67).

Por outro lado, a forte diferenciação do território da região vinhateira, devido ao relevo acidentado mas também à composição dos solos, desde o ponto de vista geológico, com diferentes tipos de xistos e, em algumas zonas, erupções graníticas, até à sua natureza mais ou menos cascalhenta, determinou uma grande diversidade de terroirs vitícolas, cujas potencialidades eram reconhecidas para a produção de vinhos de tipicidade específica. Assim, algumas zonas dos vales dos rios Varosa e Pinhão eram celebradas, antes da Companhia, pela excelência dos seus vinhos brancos, como outras o eram pelos seus vinhos retintos (Covas do Douro, por exemplo). Tal como ainda acontece nos nossos dias, apesar da modernização tecnológica recente, houve sempre uma irredutibilidade da região do Douro a um modelo único de vinho. O que justifica, também, a persistência de uma vasta gama de vinhos, com características específicas, decorrentes tanto do seu local de origem (por vezes uma pequena quinta) como das castas utilizadas e dos processos de vinificação e de envelhecimento.

Essa consciência da diversidade de terroirs vitícolas durienses explica a diferenciação estabelecida entre as parcelas de vinha, desde a primeira demarcação da região, em 1758. Numa carta datada de 30 de Setembro desse ano, o Juiz Conservador da Companhia expunha ao ministro Sebastião José de Carvalho e Melo as dificuldades da demarcação, tendo em conta a diversidade de condições de solo e de clima, por vezes na mesma freguesia: "dentro dum mesmo limite se produzem vinhos bons e vinhos ruins, conforme a situação do terreno, mais ou menos alto, e dos ventos que o dominam e sol que o rega" (Cit. por Fonseca, 1950: 21-22).

É a consciência dessa diversidade que continua a presidir, ainda nos nossos dias, à classificação das vinhas do Douro e à atribuição de maior ou menor pontuação para a distribuição do "benefício", que permite aos lavradores destinar as suas uvas à produção de vinho do Porto, mais ou menos qualificado. O "método de pontuação" definido por Álvaro Moreira da Fonseca e utilizado desde os anos quarenta do século XX conjuga, de facto, de acordo com a tradição regional, um conjunto de critérios -produtividade, clima (altitude, localização, exposição e abrigo), terreno (natureza do terreno, inclinação e cascalho) e condições culturais (castas, feição cultural, idade da vinha e compasso)- definidores da categoria de cada parcela vitícola (de A a F) da Região Demarcada do Douro (Fonseca, 1949).

 

As elites regionais e a marca "Porto"

Numa perspectiva de longa duração, desde a Idade Média, a expansão do vinhedo do Douro é, inicialmente, tímida. Só a custo o vinho ganha terreno aos cereais, pois o pão é prioritário sobre seja o que for. Mas há uma progressão concreta. O avanço das vinhas deve-se, em grande medida, aos mosteiros, focos dinâmicos de povoamento e de transformação económica. No caso do Douro, que aqui nos ocupa, esse movimento é manifesto no caso das abadias cistercienses, responsáveis por um aumento sem precedentes da viticultura, tanto em qualidade como em quantidade -num modelo que as mesmas já haviam experimentado com sucesso em áreas da França e da Alemanha. À semelhança do que acontecera nessas regiões europeias, também em Portugal só as grandes instituições religiosas possuíam recursos suficientes para corresponder ao avultado investimento requerido -sobretudo em trabalho e mão-de-obra especializada e intensiva- no plantio e granjeio das vinhas. Fruto de doações, legados pios, escambos e compras, as casas eclesiásticas (às igrejas locais e aos cistercienses seguiram-se, a muita distância, franciscanos, beneditinos, dominicanos e, mais tarde, e com alguma evidência, jesuítas e oratorianos) constituíram patrimónios de monta na região, valorizados através da promoção de experiências de cultivo na área da viticultura, decisivas quer para o consumo quer para a comercialização. Este processo é bem perceptível no Douro, mais uma vez desde a Idade Média, na relação com a cidade do Porto, e é acentuado na Idade Moderna quando os vinhos produzidos passaram a destinar-se, cada vez mais, ao consumo urbano, em primeiro lugar, e, logo depois, ao abastecimento das armadas, dos mercados de referência e dos territórios ultramarinos.

No despertar comercial português, evidente no século XIV e confirmado nos dois séculos que se lhe seguiram, o vinho desempenhou um interessante papel como suporte de negócios que se faziam, cada vez mais, por mar, a média e a longa distância.

Tal facto, como se esperaria, implicou um crescimento da mancha produtiva. Já não bastava alimentar as necessidades dos mercados locais e, sobretudo, das cidades. Para além dos consumos urbanos, surgiam outros tipos de demanda: antes de mais, dos mercadores, agentes interessados em ter vinho para vender longe, desde que este suportasse as viagens em condições de chegar aos compradores no ultramar ou na Europa, e dos armadores e agentes de navegação, necessitados de vinhos para fornecimento dos seus navios.

As casas religiosas que se ligaram a este projecto económico (desde logo as de Cister, como foi afirmado) protagonizaram formas de organização e gestão patrimonial e novidades tecnológicas. As primeiras grandes quintas vinhateiras, equipadas com lagares, tonéis e adegas, onde se produziam e conservavam vinhos cada vez mais bem confeccionados,6nasceram por sua iniciativa: como as da Folgosa (actualmente Quinta dos Frades), Paço de Monsul e Mosteirô, citadas por Rui Fernandes no século XVI e ainda hoje existentes. O mosteiro de São João de Tarouca possuía barcas de transporte que percorriam o Douro até ao Porto, trazendo vinhos e levando sal, tal como acontecia com o mosteiro de Santa Maria de Salzedas. Outros mosteiros, mais a jusante do rio, como Alpendurada e Santa Clara, ou ainda a igreja de Eja, partilhavam a portagem de Entre-os-Rios e os lucros do trânsito de vinhos. Santo André de Ancede, na região de Baião, possuía vinhas em Penaguião e Mesão Frio. Tal facto gerou uma tendência de aproximação à cidade do Porto, traduzida na obtenção (por vezes pouco pacífica) do estatuto de "vizinhos" do Porto, garante de facilidades na comercialização do vinho, dentro e fora do burgo.7

Nesta altura, a par dos monges surgiam novos investidores. Desde o século XV é possível detectar movimentos interessantes de burgueses que buscavam, a partir das cidades, entrar na posse de propriedades vitivinícolas. Do Porto, caso mais documentado, mas também de centros urbanos do interior, como Lamego ou Viseu, saíam novos senhorios e constituíam-se novas unidades produtivas (muitas delas, curiosamente, formadas a partir de parcelas de domínios eclesiásticos outrora aforados em "casais") que viriam a interferir tanto na alteração de processos produtivos como nos esquemas comerciais que marcaram a vida do produto, fazendo-o progredir como negócio lucrativo, inserido em redes e circuitos comerciais mais longos.8

À medida que a cidade se envolvia em negócios de outra dimensão à escala da economia-mundo, estas elites mercantis juntavam-se à velha aristocracia urbana. Já na segunda metade de quinhentos, tais elites mercantis, dominadas por homens de negócios cristãos-novos, possuíam interesses em vários pontos do território ligados à produção de vinhos de qualidade,9 mas também a outros produtos comercializáveis como o sumagre, que exportavam em massa para os mercados tintureiros do norte da Europa. Se a posse de propriedades não lhes era desconhecida, preferiam a modalidade de comenda mercantil, com a formação de empresas comerciais efémeras -mas consecutivamente renovadas- que combinavam capitais (da cidade) e trabalho (dos agentes locais),10 num modelo de exploração de riquezas produtivas potencialmente comercializáveis, típico do Antigo Regime.

Se os agentes do clero detinham os meios materiais e as técnicas para promover o desenvolvimento da viticultura, se a aristocracia urbana beneficiava de velhos modelos sociais e económicos para organizar domínios e explorar a terra, os mercadores usavam a sua capacidade de intervenção nas praças comerciais e nos centros financeiros de referência para protagonizarem um movimento consistente de afirmação da região.

Monges, fidalgos e mercadores. Os construtores do Douro moderno. O Douro dos vinhos, dos sumagres e dos azeites, de produção estimulada por intuitos comerciais. Registem-se estas ideias genéricas, pois, no estado actual dos nossos conhecimentos, não é possível determinar o peso de cada um deles no sector vitivinícola, nem o valor das produções que colocavam no mercado.

A organização de armadas, fenómeno recorrente no Portugal dos séculos XV e XVI, desencadeou um conjunto alargado de solicitações sobre as economias de portos, dos seus umlands e hinterlands, que haveria de se reflectir sobre a produção de vinhos, indispensáveis aos navios e às comunidades nacionais que, a partir de então, se estabeleceram nos territórios descobertos e conquistados. Este é um fenómeno de ruptura. Um fenómeno que nada tem a ver com a tradição medieval, dos consumos locais, do comércio a curta distância; trata-se de uma realidade ibérica, da expansão ibérica e das rotas intercontinentais por ela abertas. Simbolicamente, podemos estabelecer como ponto de partida desta nova realidade a solicitação feita à Câmara do Porto em 1502 por Afonso Leitão, contratador de uma nau da Índia, de grandes quantidades de vinhos que pudessem ser encontrados na cidade para abastecimento do seu navio, em vésperas da sua partida para o Oriente. A Câmara recusou. E recusaria algumas vezes mais pedidos semelhantes. É que os portos e as autoridades urbanas, então imbuídos de um espírito medieval de autarcia e proteccionismo, ainda não estavam em condições de assimilar essa abertura ao comércio mundial. Mas iriam adaptar-se rapidamente. Em breve, a imagem característica dos portos passaria a ser a das fileiras de barris alinhados nos cais à espera de embarque. No Porto, inclusivamente, a tanoaria tornou-se o motor de transformação do mais importante bairro ribeirinho: Miragaia.11

À medida que avançamos no século XVII, define-se com crescente nitidez uma aristocracia/burguesia mercantil no Porto, com interesses no negócio dos vinhos do Douro e, frequentemente, com interesses fundiários ou alimentando alianças estratégicas com grandes produtores da região vinhateira.

 

Valor, prestígio e poder

O desenvolvimento do negócio de vinhos do Douro reforçou as relações entre a cidade mercantil e a região produtora. Já vimos como, desde o século XIV, muitos "vizinhos" do Porto eram proprietários de vinhas e quintas na região do Douro e daí faziam vir os seus vinhos para consumo próprio ou para comercializar. Ao longo do século XVII, o negócio do vinho parece ter reforçado o poder de uma elite burguesa, implantada na administração municipal, que se articulava com os grandes proprietários vinhateiros do Douro, por vezes também moradores na cidade. De resto, na primeira metade do século XVII, o papel dos produtores era ainda fundamental na comercialização dos seus vinhos. Entre 1620 e 1640, o maior número de manifestantes de vinho no Porto residia no Douro. E, no mesmo período, os durienses constituíam cerca de um terço dos exportadores.

A articulação entre o Douro e o Porto, mercado de escoamento natural dos vinhos durienses e centro exportador, nem sempre foi pacífica. Desde a Idade Média, a cidade tentou sempre controlar o seu comércio e beneficiar de imposições fiscais sobre o mesmo. Ao longo do século XV, senão antes, as taxas lançadas sobre os vinhos constituíam a maior fonte de receitas da cidade.12 Mas as tentativas de aumento da carga fiscal sobre o vinho do Douro por parte da Câmara do Porto esbarravam, por vezes, com a oposição conjunta dos moradores do Porto e dos produtores de vinhos de Cima Douro, como aconteceu em 16471648, segundo Aurélio de Oliveira. O conflito só se resolveu pela intervenção régia que determinou que a Câmara não impusesse novos impostos sobre o vinho (Oliveira, 1984: 229).

O crescimento do negócio exportador, bem patente desde finais do século XVII, atrairia novos actores, negociantes flamengos, hamburgueses e, sobretudo, ingleses, reforçando-se a concentração de capitais e novos investimentos na área do armazenamento e da comercialização no Porto e em Gaia. Não é difícil perceber a crescente primazia de quem organizava o negócio e dominava a rede comercial, a montante e a jusante, mantendo, por um lado, relações privilegiadas com os maiores produtores durienses e, por outro, tecendo uma rede entre os negociantes dos portos de destino do produto. Num momento em que o vinho do Porto ganhava o reconhecimento do mercado, a tendência parece ter sido a de uma crescente apropriação por parte do sector comercial das vantagens da denominação "Porto". A "aristocracia do vinho do Porto" dominava a cidade exportadora do vinho e a região produtora, não sem conflitos, gerados, em grande parte, nessa luta maior pelo controlo da denominação "Porto" e dos respectivos preços e cadeia de distribuição. As relações de complementaridade e de equilíbrio entre os interesses do sector produtor e o sector comercial irão, pois, afastar-se cada vez mais. Em 1754, os lavradores do Douro acusavam os negociantes britânicos do Porto de "quererem fazer o negócio todo seu e nenhum dos criadores".13

A crise comercial de meados do século XVIII conduziu, como vimos, à intervenção do Estado e à imposição de uma estrutura de controlo da região produtora e do comércio dos seus vinhos. Por essa altura, pressionada pelos interesses dos grandes vinhateiros durienses e por negociantes do Porto, as medidas adoptadas pelo Estado pombalino visavam travar o domínio do sector pela importante colónia britânica. Mas, acima de tudo, como salientou Borges de Macedo, tratava-se, na lógica da governação absolutista, de controlar um sector-chave da economia nacional e de preservar -e, simultaneamente, subordinar- os interesses dos grupos sociais dominantes que lhe estavam associados (Macedo, 1982: 51).14 Neste sentido, num momento em que se agudizou o conflito de interesses entre o sector produtivo e o sector comercial, o Estado procurou garantir aos grandes vinhateiros durienses parte das mais-valias decorrentes da notoriedade alcançada no mercado externo pelo vinho do Porto,15 mas sem pôr em causa os fortíssimos interesses que se jogavam no sector exportador.

 

Conclusões

Há um processo histórico de identificação e produção de vinho com a região do Douro. Decorrente, em grande medida, da ocupação humana do território e das restrições que lhe eram colocadas pelo solo e pelas acessibilidades, até ao século XVII, a zona produtora de vinho escassamente coincidia com os limites da actual região demarcada. No entanto, desde muito cedo, o vinho que ali era produzido revelou vocação mercantil, que a sua capacidade de envelhecimento, exaltada em descrições de finais da Idade Média, oferecia. A partir do século XVII, com a crescente procura externa, e, em especial, a procura específica do mercado inglês, o vinhedo galgou terreno, no interior do território do Alto Douro, onde podia ser obtido com as características pretendidas pelos ingleses, que se haviam tornado os seus principais compradores: aguardentado, doce, aromático e retinto. A demarcação pombalina do século XVIII consagrou esta realidade vinícola.

Ao longo dos séculos, o vinho beneficiou de estímulos externos à região e ao consumo local, para evoluir e para se valorizar, a ponto de alcançar uma posição de prestígio nos mercados internacionais. Num primeiro momento, medieval, a produção respondia, quase em exclusivo, aos consumos locais e da cidade do Porto, mas no século XVI o vinho duriense passou a garantir o abastecimento das armadas e a ganhar uma dimensão económica que não passou despercebida aos negociantes. A partir do século XVII, o sector é grandemente estimulado pela "revolução vinícola" operada pelos holandeses (na aguardentação e fortificação dos vinhos) e generalizada no século XVIII, nos armazéns do Porto/Gaia e nas adegas do Douro, para responder às exigências do mercado britânico.

A região do Douro proporcionou as condições necessárias para a confecção de um vinho especial. Se, numa primeira fase, o vinho tinha de partilhar a terra com o pão e o gado (engendrando-se, inclusivamente, soluções de plantio da vide sui generis, como aconteceu com os pilheiros), à medida que se transformou numa mais-valia económica de peso, o vinho passou a dominar na paisagem e a diferenciar-se segundo os seus atributos. É do século XVIII a tomada de consciência de que o vinho que a terra produzia variava na qualidade, para a qual contribuíam factores diferenciados determinados pelo clima, terreno e condição dos vinhedos. Por isso, as demarcações pombalinas estabeleceram uma classificação das vinhas de acordo com diferentes qualidades de vinhos (e diferentes preços legais) que tais vinhas eram autorizadas a produzir. E, já no século XX, esses factores deram origem a um "método de pontuação" que ainda nos nossos dias serve para classificar as vinhas.

O estabelecimento da vinha e a evolução do comércio de vinhos durienses resultaram de interesses de grupos que, conforme os contextos, se constituíram como protagonistas de processos sociais e económicos nos quais o vinho teve um lugar de destaque. Inicialmente, o vinho do Douro, como outros grandes vinhos europeus, foi obra de mosteiros, obra de cistercienses, proprietários de bons terrenos e persistentes incentivadores do trabalho da terra. Porém, desde cedo, o vinho foi negócio que interessou às elites mercantis da cidade onde ele era vendido e de onde era exportado. No Porto, centro de comércio de vocação marítima, atlântica, o negócio dos vinhos do Douro tornou-se lucrativo para os mercadores que armavam navios e participavam na construção das economias-mundo dos séculos XVI e XVII. À medida que estes tratos evoluem, vemos nascer uma elite que tem interesses muito fortes no Douro. Que comercializa os vinhos e os seus sumagres da terra, mas que também investe em propriedades e se liga aos destinos dos grandes produtores da região vinhateira. No século XVIII, esse processo já está consolidado.

O reforço das relações entre a região produtora, o Douro, e o centro exportador, o Porto, eram histórica e estruturalmente inevitáveis. A movimentação medieval dos abades proprietários em direcção à cidade, obtendo o estatuto de "vizinhos", constituiu o primeiro passo de um relacionamento que se aprofundaria pelo tempo fora. Não sem que houvesse um processo tentado, e tantas vezes concretizado, de domínio urbano sobre o país do vinho, com a eclosão de conflitos mais ou menos acesos, que exigiram a intervenção do poder central.

Tornado negócio de exportação, tornado riqueza de uma economia cada vez mais dependente de interesses externos, o comércio do vinho, como outros, atraía novos actores, estrangeiros, flamengos, hamburgueses e, sobretudo, britânicos, que encetavam uma luta pelo controlo da designação "Porto" e pela decisão das dinâmicas do vinho. Se o Estado absolutista, por intermédio de Pombal e da Companhia por ele criada, tentou, e, de certo modo, conseguiu, salvaguardar os interesses dos grandes vinhateiros durienses, pouco ou nada pôde, ou quis, fazer em relação aos interesses exportadores das elites estrangeiras do vinho do Porto, dada a forte dependência do sector do vinho do Porto face aos mercados externos.

 

Notas

1 Realidade que se explica tanto pela fraca produtividade dos solos e por uma morfologia que tornava difícil o seu aproveitamento como pelas fracas acessibilidades.

2 Necessitamos de estudos mais aprofundados que nos permitam estabelecer linhas de continuidade de povoamento e o perfil das comunidades durienses, desde logo no enunciado das povoas constituídas na alta Idade Média.

3 Se bem que estes mosteiros possuíssem propriedades em diferentes áreas.

4 Embora estejamos a falar de transporte. Não quer dizer que a proveniência dos vinhos não seja diferente. No entanto, outras menções colhidas na documentação -concelhia e notarial- continuam a referir a mesma geografia produtiva.

5 Veja-se, por exemplo, Bradford, 1969. A expressão é usada por diversos autores britânicos.

6 Vinhos moles, cozidos, garavatados, pintados, limpos, entre outros, tal como nos surgem designados na documentação.

7 Os vizinhos livravam-se de entraves concelhios na venda de vinhos e podiam exportar livremente a maior parte da produção (Ventura, 1998: 89-93; Duarte e Barros, 1997: 77-118).

8 É vulgar vermos vereadores do burgo portuense (os primeiros a fazerem-se notar como proprietários fundiários a partir deste movimento urbano), nas vésperas das vindimas, a pedir escusa da sua presença nas reuniões camarárias, seguindo para Riba-Douro, Lamego e outras localidades mais chegadas, a "fazer a sua vindima".

9 Por exemplo, em Tourais, em Canelas ou na Rede.

10 Mas não só. Também devemos citar os muitos casos de parcerias para exploração de vinhos -comprovando o interesse que os mesmos assumiam, já no século XVI, para os negócios do burgo- entre capitalistas e mercadores da cidade; os primeiros adiantando o dinheiro do investimento de capital inicial, e os segundos, o seu "trabalho e indústria". Os lucros, como nos casos referidos, eram repartidos pelos dois a 50%.

11 Arquivo Histórico Municipal do Porto. Livro 1° de Próprias, fls. 250 e 270; e, principalmente, Vereações, liv. 16, fls. 51v-52. Estes documentos são citados e trabalhados em Barros, 2004: 251-252, 264-265.

12 E continuariam a ter muito peso nas finanças do burgo mesmo quando o açúcar brasileiro dominava o panorama comercial.

13 Resposta dos Comissários Veteranos às Novas Instruções da Feitoria, 1754. Com a criação da Feitoria Inglesa do Porto, em 1727, esta passou a representar os interesses da colónia de comerciantes britânicos da cidade. No auge da crise comercial de meados do século XVIII, é visível a conjugação desses interesses face aos dos lavradores do Douro, através de posições colectivas: veja-se Novas Instruções da Feitoria Inglesa a respeito dos Vinhos do Douro, 1754. Os dois documentos estão transcritos, na íntegra, em Tenreiro, 1944: 7682. Sobre o crescente domínio do negócio dos vinhos do Douro pelos ingleses, cf. Cardoso, 2003.

14 Segundo o autor, "o Estado de Pombal intervém em defesa do produtor tradicional contra os novos concorrentes encorajados na produção pelo tratado de Methwen, e pela existência de fontes coloniais de consumo".

15 É este, de resto, um objectivo comum a todas as regiões de denominação de origem. Veja-se, por exemplo, Unwin, 1991: 312-313.

 

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Recibido: 01/12/2015 Aprobado: 23/01/2016

 


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